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10 Livros que (Ainda Hoje) são Muito Mal Interpretados


Ler um livro é geralmente uma escolha. A depender da complexidade do volume, a tarefa é muitas vezes simples e prazerosa. Às vezes, mergulhamos em estórias incríveis e somos enredados pelos personagens e suas ações de uma maneira tão envolvente que deixamos de perceber certas nuances, indiretas ou analogias propostas pelo autor num segundo plano do livro. Já neste caso, a tarefa não é tão simples assim. Em muitos casos, o objetivo do escritor está implícito e não consegue ser identificado com facilidade. Some-se a isso, o problema, quase que generalizado, de interpretação de texto que muitos possuem, ou por causa de uma mera deficiência de leitura, ou, simplesmente, pela limitação de conhecimento e (por quê, não?), uma certa por má fé de quem quer enxergar em uma obra apenas aquilo que lhe convém. Ao longo da História, muitos livros suscitaram debates acalorados e provocaram confusões sem fim quanto à real mensagem que seus autores quiseram passar, e mesmo assim, alguns seguem carregando sua sina de eternos incompreendidos.

A seguir, 10 obras que, ao longo dos tempos, fizeram por merecer uma boa releitura por parte de seus leitores. Confiram.

Imagem de capa: cena do filme "Dom Quixote", de Orson Wells.



10°
"Fahrenheit 451" (1953)
Ray Bradbury
Junto com obras seminais como "1984", o livro "Fahrenheit 451" faz parte dos grandes clássicos da distopia no século 20, aquele gênero literário que versa sobre futuros dominados pela opressão dos governos e das autoridades ao cidadão comum. O enredo do clássico de Bradbury fala sobre um bombeiro, cujo ofício é queimar livros. No entanto, com o passar do tempo, ele entende o quão absurda é essa prática, e começa a se rebelar contra o sistema do qual vive, passando a ser um fora da lei. Seria fácil rotular a obra como como uma crítica às ditaduras, certo? Só que o escritor já revelou algumas vezes que a sua preocupação ao fazer "Fahrenheit 451" era que a TV estava roubando o espaço dos livros. Mesmo com explicações dele, teve gente que não se convenceu. Quando era professor visitante na Universidade da Califórnia, vários alunos disseram a Bradbury que ele tinha uma visão errada do próprio livro, e que o tema se tratava, realmente, de censura.


 
"On the Road - Na Estrada" (1957)
Jack Kerouac
Foi muito graças a este livro que a geração beat, dos anos 60, ficou bastante conhecida. Os beats, da geração paz e amor, do sexo, drogas e rock'n roll, das "viagens lisérgicas", das provocações à sociedade conservadora, enfim. Ao narrar uma viagem (literal) de seu autor (um poeta) em busca de novos conhecimentos da vida, ao lado de seu amigo Dean, "On the Road", segundo muitos, definiu "uma geração". Mas, a verdade é outra. Primeiro, os acontecimentos do livro aconteceram 10 anos antes dele ser lançado, portanto, não poderia ter definido a época supostamente atribuída a ele. E, segundo, e talvez mais importante, Kerouac, simplesmente, odiava os beats, achava que todos não passavam de uns pretensiosos e arrogantes. Detalhe importantíssimo: ele detestou o tempo que passou na estrada. Pra ele, foram 7 anos perdidos, em que ele se divertiu com sexo e drogas, mas, enjoou. Ah, e Kerouac era católico conservador, diga-se de passagem (!).


"Alice no País das Maravilhas" (1865)
Lewis Carroll
O tão conhecido "Alice no País das Maravilhas" é um caso inusitado de má interpretação sobre outra má interpretação. A princípio, trata-se de um livro pra crianças. Mas, quando observamos mais de tempo, pode não ser bem assim. Carrol era completamente viciado em ópio, além dele ter práticas que podemos considerar pedófilas, como tirar fotos sensuais de menininhas de 12 anos. Além disso, o enredo deste livro trata de uma garota que vai parar num mundo surreal, come cogumelos e ainda fala com animais. Obviamente, o que dá pra supor que é a obra é uma apologia ao universo lisérgico das drogas. Porém, a verdade é bem mais "chata". Carrol era professor de matemática, e quando escreveu sua obra-prima, essa matéria estava tomando novos rumos no campo do ensino, o que estava desagradando ao autor. Pode parecer incrível, mas, "Alice no País das Maravilhas" não passa de uma sátira à matemática moderna, bem como uma crítica a algumas figuras políticas da era vitoriana.


"Dom Casmurro" (1899)
Machado de Assis
Entra geração, sai geração, e a pergunta permanece a mesma: Capitu traiu ou não Bentinho? O grande clássico machadiano provoca tantos debates sobre isso, que o que não faltam são teses e mais teses acadêmicas tentando "desvendar" tal mistério. Só que, ao mesmo tempo, existe uma forte corrente que diz que a obra não trata de traição (de Capitu), mas, do ciúme (de Bentinho), visto que, em muitas passagens, o protagonista parece estar tendo mais alucinações do que enxergando a realidade. “Betinho faz a denúncia e o julgamento. Ele é advogado – imagem que devemos olhar com certa prudência – e o que sabemos de Capitu é o que ele diz. Como ele é um sujeito simpático, o leitor tende a acreditar em sua versão”, disse uma vez o escrito e crítico literário Luís Augusto Fischer. O exímio texto de Machado, propositalmente, causa dúvidas no leitor, e nesse caso, a má interpretação da obra foi pensado e articulada de maneira genial pelo próprio autor. Sem falar que ainda há sub-textos poucos perceptíveis à maioria dos leitores, como a crítica de Machado à busca desenfreada por ascensão social (Bentinho, vez ou outra, mostra ter certo preconceito de classe com Capitu). Isso só mostra que dúvidas e questionamentos em relação a "Dom Casmurro" continuarão por mais algumas gerações.



"A Origem das espécies" (1859)
Charles Darwin
O homem "veio" do macaco. Essa é uma das frases mais recorrentes quando o assunto é a teoria da evolução e suas variantes. E, claro isso se deve, muito em parte, a uma má tradução (possivelmente, proposital) da obra "A Origem das Espécies". Também pudera. A publicação de Darwin é considerada uma das mais revolucionárias de todos os tempos, e bateu de frente com a toda-poderosa teoria criacionista, a ponto de muitos religiosos afirmarem que este livro se trata do “mais duro golpe contra a palavra de Deus já feito”. Exageros à parte, certo mesmo é que a obra, de fato, influenciou muito da ciência que veio depois, principalmente, no campo da Biologia, que pôde começar a compreender um pouco o porquê da grande variedade de animais na Terra, com o desenvolvimento de temas, como a seleção natural, por exemplo. Obviamente, para enquadrar o livro como mentiroso, propagou-se, erroneamente, que Darwin havia dito que o homem "veio" do macaco, quando, na verdade, seus estudos dizem que homem e macaco vieram de ancestrais em comum, com cada um seguindo uma linha evolutiva diferente. Verdade que muitas teorias darwinianas já estão ultrapassadas, mas, "A Origem das Espécies" continua sendo uma excelente fonte de consulta para entendermos um pouco melhor a respeito da vida, ao passo que ele continua a ser um livro (tendenciosamente) mal interpretado pela maioria.



"O Príncipe" (1532)
Nicolau Maquiavel
Coitado de Maquiavel. Quem diria que, com o passar dos anos, o seu nome viraria sinônimo de algo perverso ("maquiavélico"), sendo que ele foi um dos autores que melhor soube retratar a podridão do poder e, cujo principal livro ("O Príncipe") é um alerta para o cidadão comum de como a política pode ser um campo nefasto. No entanto, parece que todo mundo entendeu tudo errado. Tido como uma espécie de "manual prático" para ditadores, corruptos e afins, a obra, na verdade, tem cunho totalmente satírico em relação ao meio político. Mesmo assim, muitos ainda acreditam que Maquiavel "trabalhava" para a família Medici (um grupo rico e poderoso que dominou a Itália por anos), e foi a ela que ele havia dirigido o livro, em forma, digamos, de "conselho". No entanto, a história ensina: os Medicis, quando voltaram à Florença após um longo exílio, destruíram o sistema republicando que havia ali. Por ser um diplomata, além de republicano, Maquiavel foi acusado de traição, sendo preso e torturado a mando dos Medicis. E, foi ao fugir de sua cidade, que ele fez "O Príncipe". Grande forma de "aconselhar", não?


"Assim Falava Zaratustra" (1883)
Nietzsche
Nietzche é, sem dúvida, um dos filósofos mais famosos de todos os tempos. E, uma das suas frases mais famosas ("Deus está morto!") está aqui, neste livro. E, do que ele trata? De forma rasa, podemos dizer que a obra fala sobre o conceito nietzchiano de "superhomem", explorando o fato de alguém ser tão superior ao demais, que se acha no direito moral de conquistar o mundo. O problema foi que Hitler, ao ler "Zaratustra" pela primeira vez, interpretou do jeito dele, e achou que "era" esse superhomem, o que "inspirou" o seu ego, fazendo com que ele distribuísse cópias entre os amigos, ficasse mais envolvido com política, e o resto todo mundo já sabe. Pronto. Motivo mais do que perfeito para os péssimos intérpretes de plantão taxarem Nietzche de antissemita. O pior é que a irmão do filósofo e o marido dela eram antissemitas, e Nietzche sempre fez questão de se posicionar contra a ideológica de ambos. O problema é que quando o autor de "Zaratustra" morreu, a sua irmã se apropriou de sua obra, editou os seus trabalhos e inseriu sub-textos contra os judeus neles. Foi daí que Heidegger, filósofo militante do nazismo conheceu a versão editado do livro em questão, e passou a difundir ideias completamente equivocadas a respeito de Nieztche, que, com certeza, depois de tanta má fé, ainda hoje, revira-se no túmulo.


"1984" (1949)
George Orwell
A distopia é um dos temas mais fascinantes da literatura moderna, mas, também um dos que mais podem sofrer com interpretações "equivocadas", a depender da intenção do leitor. No caso de "1984", que cunhou o termo "Big Brother" ("O Grande Irmão", que tudo vê), o enredo, em si, é claro: fala de um sistema ditatorial, que falsifica a realidade dos fatos, e que manipula a população ao seu bel prazer. O problema está quando se projeta aquilo que se tem ojeriza na vida real aos vilões do livro. Para os liberais de direita, "1984" é uma crítica aos regimes comunistas, em especial, os da União Soviética e China. Já, para os progressistas de esquerda, o livro trata do autoritarismo de um sistema capitalista qualquer, que manipula a população, por exemplo, através da mídia. Na verdade, a má interpretação da obra se dá, justamente, pela ridícula polarização de nossos tempos, que busca sempre um "inimigo" a ser combatido. A construção desse livro, por sinal, debilitou ainda mais a frágil saúde de George Orwell, que, após terminá-lo, foi internado num hospital, morrendo pouco tempo depois. Não pôde, portanto, ver a sua obra máxima ser deturpada por quem não entende que a crítica de "1984" é contra qualquer regime autoritário, seja ele de que ideologia for.


"O Capital" (1867)
Karl Marx
Ultimamente, chamar alguém de "marxista" virou um xingamento quase mortal. Direitistas e esquerdistas se engalfinham aos montes, cada um tentando dar a sua versão definitiva para a obra máxima do filósofo alemão. Mas, a questão é: quanto, realmente, leram "O Capital" e o entenderam? Claro, ler a obra não é das tarefas mais simples, visto que só o seu primeiro volume tem inacreditáveis 900 páginas. Para se ter uma ideia, em meados dos anos 60, grupos de seminários no Brasil atravessaram toda aquela década em que o foco de leitura era única e exclusivamente "O Capital". Tal esforço foi louvável, com certeza, mas, ao mesmo tempo, gerou interpretações distorcidas tanto da ala a favor, quanto da ala contra o marxismo dentro do campo universitário, gerando uma nociva estigmatização do livro que dura até hoje. Termos e conceitos importantíssimos para os dias atuais, como mais-valia, fetichismo, mercadoria, lucro e até mesmo a própria palavra "capital" foram, ao longo dos anos, adquirindo interpretações nebulosas, chegando ao ponto de se atribuir a Marx uma das ideias mais difundidas por setores reacionários: de que um esquerdista não pode ter produtos originários do seu próprio trabalho. Considera-se "contraditório" um marxista ter um aparelho celular ou um tênis de marca, por exemplo. Por essas e tantas outras, é que vale a pena tentar (re)ler "O Capital", mesmo que isso demande bastante esforço.


"Bíblia Sagrada" (Sem data definida)
Vários autores

A Bíblia cristã é, provavelmente, o livro mais lido de todos os tempos. E, também o que mais gera discórdia, até mesmo entre os seus próprios seguidores. Se assim não fosse, não teríamos tantas denominações cristãs, e dentro dessas denominações, mais sub-denominações ainda (na verdade, a Bíblia, em si, é uma espécie biblioteca que começou a ser escrita séculos antes de Cristo, e que compreende 66 livros - se for a evangélica -, ou 73 - se for a católica). A quem veja na Bíblia um mero livro de costumes de uma época, uma espécie de documento histórico de períodos que foram importantes para a formação das civilizações como a conhecemos hoje. E, claro, há os que a consideram a verdade absoluta do Universo. Até aí, nada demais. O problema é que, em nome deste livro, muitas atrocidades históricas foram cometidas, e ainda hoje, muitos grupos cristãos a têm como base para restringir direitos alheios e hostilizar certos grupos, como o dos LGBT's, por exemplo, considerados grandes "pecadores". Só pra lembrar: as colonizações da Europa naos continentes da África e das Américas tiveram a bênção da Igreja que tinha a Bíblia como livro sagrado. Disso, salientemos, inúmeros indígenas foram trucidados. A escravidão dos negros também foi legitimada, biblicamente falando, quando jesuítas, ao falsificarem as palavras desta obra, afirmavam que o negro não tinha alma. E, obviamente, não nos esqueçamos da temida Inquisição ou do recente Klu Klux Klan (ambos os movimentos legitimados pela Bíblia). Porém, é bom ressaltar que ela, até por ter sido "escrita" ao longo de séculos (do Antigo ao Novo Testamento), e por possuir vários autores, não é de se estranhar que seja complicado separar o que é verdadeiro, o que é falso e o que é apenas uma mera metáfora em seus relatos, principalmente, se formos levar em consideração que a Bíblia, como a conhecemos, provavelmente, só veio a ser compilada mais de trezentos anos após o suposto nascimento de Jesus Cristo, no Concílio de Niceia, aonde um suposto grupo de estudiosos escolheu quais evangelhos comporiam o livro máximo dos cristãos. No entanto, divergências históricas à parte, certo mesmo é que um enorme espaço da Bíblia é dedicado à tolerância, ao amor ao próximo e ao respeito às diferenças (tudo, ironicamente, o que muitos cristãos não fazem). E, nesse embate de fé, todos saem, perdendo (incluindo o próprio Cristo, que, mais de 2000 anos depois, ainda tem suas palavras deturpadas e usadas por "mercadores da fé alheia").

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