Dica de Filme
O Abraço da Serpente
2015
Direção: Ciro Guerra
NOTA: 7,5/10
O Abraço da Serpente
2015
Direção: Ciro Guerra
A espiritualidade é um assunto sempre delicado. E, quando se refere a culturas tidas como "exóticas", corre-se o risco de resvalar na caricatura pura e simples. É o caso dos povos indígenas, que até hoje são tratados ou como bárbaros, ou como um grupo que não merece, sequer, a alcunha de "seres humanos". Os índios servem para nos divertir, como uma espécie de agentes naturais do turismo, os bobos da corte para tirar fotos ou, simplesmente, um povo amaldiçoado, ou preguiçoso. Nesse aspecto, do trato com a espiritualidade indígena, é excelente o fato do filme "O Abraço da Serpente" tratar esta cultura, a meu ver, com muito respeito, e mostrar que, em linhas gerais, não se diferenciam dos outros povos no mundo, seja o homem branco europeu, seja o negro africano.
A história assemelha-se a um roadie movie, com os personagens principais em busca de auto-conhecimento, tendo, pra isso, que se despirem de seus preconceitos e de seu materialismo. O epicentro da trama é o nativo da região Karamakate, que se mostra em dois momentos distintos de sua vida: quando ele está jovem e depois, quando está bem mais velho. Em ambos os casos, a solidão lhe persegue, ou ele a persegue. Último sobrevivente de um povo massacrado pela colonização e pela exploração da borracha, Karamakate vive em completo isolamento na floresta, não tendo, sequer, aproximação com outras tribos. E, é, justamente, no contato com o homem branco que a sua vida muda nesses dois momentos de sua existência.
O filme trabalha muito bem esses dois momentos da vida do personagem principal, deixando claro que o sua grande preocupação é reter as memórias de seu antigo povo, tentando preservar os seus costumes. Claro, o Karamakate jovem se mostra mais imaturo e inexperiente do que o seu "eu" mais velho, mas, isso não impede que vejamos o quanto os dois estão perdidos em seus propósitos, e assustados com a possibilidade de terem os seus costumes ancestrais perdidos no tempo. É um personagem, em geral, muito bem tratado pelo roteiro, apresentando emoções tipicamente humanas, que encontramos em qualquer parte do mundo, como as incertezas, a covardia e a raiva.
Os dois homens brancos que acompanham Karamakate na sua juventude e na sua velhice (exploradores de plantas), encontram nele mais que um guia para as andanças na floresta. Como se fossem "discípulos" do nativo indígena, eles terão que aprender lições que serão úteis em suas futuras experiências de amadurecimento e sabedoria. Entre esse aprendizado, o de se livrar de seus apegos materiais, e passar a enxergar a realidade de outro modo, ambos adoecem e reagem, mas, não é certo que a redenção espiritual virá. O roteiro, habilmente, não deixa fácil, e fica a nosso cargo as múltiplas interpretações que, ocasionalmente, vão surgir na trama.
Além dessa interessante relação entre os protagonistas, o filme ainda reserva boas críticas à colonização, principalmente, à violência dos seringueiros para com os índios e as missões jesuítas, que, ao demonizarem a cultura indígena, quase a exterminaram por completo. O fanatismo religioso também dá as caras nesse momento, o que gera uma das mais fortes sequências do longa, envolvendo crianças, mas, é também o calcanhar de Aquiles da produção. Ao mostrar esse fanatismo anos depois, a produção perde um pouco a mão, com cenas um pouco caricatas. Inclusive, após essas cenas, o filme perde um pouco a pegada, o ritmo, mas não prejudica o filme de um modo geral, porém, essa parte, especificamente, poderia ter sido evitada no corte final.
Em termos de interpretações, os atores estão excelentes em seus papeis, passando uma impressão quase documental, reforçada pela bela fotografia em preto e branco. A direção de Ciro Guerra é competente de uma maneira geral, só errando o tom da já citada sequência dos fanáticos religiosos, e poderia, da metade pro fim, ter encurtado mais o filme, o que seria um ganho, sem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, ele não compromete ao, pelo menos, demonstrar domínio da história, que, mesmo travada aqui e acolá não perde a força de sua mensagem.
"O Abraço da Serpente", é uma produção, no mínimo, interessante, que fala de um assunto que poderia ter rendido muito pouco. Caso fosse feito de outra maneira, o filme seria nada mais do que uma peça distante de contemplação de uma cultura da qual, ainda hoje, conhecemos pouco. Mas, ao mesclar sentimentos e emoções universais, o longa nos oferece uma importante reflexão sobre a importância de nossas memórias, bem como o da tolerância ao que é diferente aos nossos olhos. Algo que transcende o próprio cinema.
NOTA: 7,5/10
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