Dica de Filme
O Comboio do Medo
1977
Direção: William Friedkin
NOTA: 9/10
O Comboio do Medo
1977
Direção: William Friedkin
Houve uma época que Hollywood topava investir projetos ambiciosos de diretores visionários (e, claro, completamente "loucos"). Não há como negar a coragem dos estúdios nos anos 70 em investiram em filmes que hoje seriam impraticáveis, tais como "O Poderoso Chefão", "Taxi Driver" e "Apocalipse Now". O longa "O Comboio do Medo", de um William Friedkin no auge, está nesse seleto grupo. Depois de ganhar o Oscar por "Operação França" e ter feito um sucesso estrondoso com "O Exorcista", o diretor, simplesmente, foi às florestas sul-americanas refilmar "O Salário do Medo", de Henri Georges-Clouzot, lançado em 1953.
Tal ousadia teve seus resultados (negativos): "O Comboio do Medo" amargou um retumbante fracasso nas bilheterias ("Guerra nas Estrelas" tinha acabado de chegar aos cinemas, é bom lembrar). O filme, custeado em 22 milhões de dólares, amargou um prejuízo de 10 milhões, e foi o começo do ostracismo de Friedkin, que nunca mais se recuperou, e ainda hoje lança filmes aqui e acolá, mas, sem grande repercussão. A própria produção foi extremamente conturbada, com três meses de filmagens, na maior parte do tempo, no meio de uma floresta tropical. E, ainda há o fato de que William Friedkin nunca foi um profissional fácil de trabalhar. Porém, mesmo com o fracasso e todos os inconvenientes, "O Comboio do Medo" é um dos melhores filmes da década de 90, o que não é pouco.
Primeiro, temos aqui uma narrativa brilhante. O diretor sabe muito bem o QUE contar e QUANDO contar, não perdendo tempo com trivialidades. Os personagens principais vão sendo mostrados um a um, sem pressa. E, esse cuidado é essencial, pois, a construção dos personagens e sua motivações vão ser determinantes ao longo do filme. E, todos, com algum histórico de perseguição, encontram-se em Costa Rica, nação dominada por uma ferrenha ditadura, aonde a população local pobre é a que mais sofre com a exploração tanto das autoridades locais, quanto das empresas estrangeiras que recrutam trabalhadores quase em regime de escravidão.
A produção, na sua primeira metade, foca-se mais na relação dos personagens principais com essas situações, e como cada um reage e tenta sobreviver na medida do possível. É só no meio do filme que entendemos o porquê do título em português, e mesmo essa aparente "demora" para a ação, de fato, acontecer, não atrapalha de forma alguma o desenrolar da história, que é envolvente e interessante oi tempo todo. E, se a primeira hora da produção é reservada a um estudo de personagem simples, mas, enxuto e coeso, depois, temos algumas das mais impactantes cenas de um filme de sobrevivência que se tem notícia. A angústia e o sofrimentos de quem está numa situação extrema é palpável, e quase dá pra sentir o odor e o tato das coisas.
Ao mesmo tempo em que temos esses elementos, o pano de fundo do roteiro, habilmente, concentra-se numa crítica aos regimes ditatoriais que existiam naquele período, além de apontar o dedo para a exploração predatória de mega-empresas. Claro, não é nada realmente aprofundado, mas, acaba sendo melhor assim. Afinal, expor um pouco desses assuntos ali e acolá acaba gerando uma melhor reflexão do que tentar fazer algo que soe panfletário demais. Exemplo disso, é a impressionante cena de uma explosão que mata e fere diversos trabalhadores locais, quando o exército vais levar os corpos para a cidade, há uma verdadeira batalha campal, com a população completamente revoltada com o ocorrido. Uma sequência de grande impacto.
Por ser, em essência, um filme de sobrevivência, "O Comboio do Medo" tinha que nos apresentar personagens com quem nos importássemos. E, é isso o que ocorre, porém, mais uma vez, houve coragem por parte de seus realizadores, pois, assim como "Taxi Driver", os protagonistas do longa de Friedkin são tudo, menos carismáticos. Ao contrário: todos possuem ambições muitos particulares, e alguns não hesitariam em deixar os "companheiros" para trás, se preciso fosse. Só que é aí que reside o trunfo do roteiro: estamos diante de personagens, essencialmente, humanos, que, facilmente, encontraríamos na vida real. E, mesmo que a contragosto, torcemos por eles, e para que sobrevivam ao inferno pelo qual estão passando.
As atuações são formidáveis, em especial, a de Roy Scheider, recém-saído do mega-sucesso "Tubarão". Sua interpretação é visceral, indo de ataques de fúria, completamente irracionais, até olhares que dizem mais do que palavras. O restante do elenco também não fica atrás, tendo Bruno Cremer com destaque, num dos personagens que mais aparece em cena, e o que tem uma das histórias mais interessantes. Mas, o grande mérito do filme vai mesmo para o seu realizador, William Friedkin. Sua direção não é só segura, como vigorosa, e, em alguns casos, inventiva, com jogos de câmera que ajudam, de verdade, na narrativa, não sendo meros exercícios de estilo. De todo o contexto, só o roteiro que, em alguns momentos, apresenta falhas, com os personagens tomando algumas atitudes impensadas só para fazerem "a ação fluir". Mesmo assim, são pequenos erros pontuais.
"O Comboio do Medo", enfim, é uma experiência cinematográfica completa, e que ainda serve como "peça histórica" para mostrar o quanto Hollywood decaiu ao longo dos anos. Claro, ninguém mais espera que hoje, com os recursos técnicos, um cineasta precise deslocar toca uma equipe para outro país, em condições inóspitas. Mas, que, pelo menos, ainda se permanecesse a qualidade nos roteiros, atuações, direções, etc. Tudo bem que não nasce, todo dia, um Friedkin, um Coppola ou um Scorsese, mas, assistir a filmes como "O Comboio do Medo", acaba dando a inevitável sensação de nostalgia de que antes o cinema daquela época era melhor; bem melhor.
NOTA: 9/10
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