Dica de Filme ("nocturama")

Dica de Filme

Nocturama
2016
Direção: Bertrand Bonello


FORTE PRODUÇÃO FRANCESA MOSTRA A QUESTÃO DO TERRORISMO (E, DA SOCIEDADE, COMO UM TODO), DE MANEIRA, ORA REALISTA, ORA INTIMISTA, MAS, PRINCIPALMENTE, PESSIMISTA

O mundo pós-11 de setembro passou a ser um mundo comandado pelo medo do terror. Esse medo, obviamente, reverberou na arte, em especial, no cinema. Podemos encontrar, baseado nisso, desde produções vergonhosas, como "Torres Gêmeas", até poderosos estudos sociais, como no caso do fundamental "Elephant". Na Europa, outro alvo em potencial de alguns terroristas fora os EUA, não é muito comum encontrarmos produções que falem sobre o tema. 

Nesse sentido, "Nocturama" é um achado, não só pela tema exposto, mas também, pela forma madura, consciente e até brutal com que o assunto é abordado, provocando e questionando o espectador a cada instante. Não estamos diante de um filme "fácil", por mais clichê que isso soe.




Primeiro de tudo, paciência, meus caros. O filme, propositalmente, "demora pra acontecer". Na verdade, quando começa, ele já está "acontecendo", com cada um dos personagens fazendo alguma coisa que, aparentemente, é trivial, mas, que desconfiamos de que se trata de um esquema mais complexo. 

Os minutos vão transcorrendo, e esses personagens se encontram, desencontram-se, pegam e saem do metrô, entram e saem de carro, pegam estranhos pacotes, e por aí vai. Só depois de um bom tempo, é que vamos entendendo que aqueles jovens estão a ponto de executarem um atentado terrorista. 

Mas, não esperem correria, histeria. Não estamos falando de um blockbuster hollywoodiano, por exemplo. Aqui, o buraco é mais embaixo, e vamos tendo a percepção, quase em tempo real, dos preparativos para o atentado, e toda a apreensão que a expectativa pra isso gera. Somos levados a ser mais do que cúmplices; somos quase participantes ativos daquele grupo, acompanhando cada passo deles.

Inteligentemente, o filme possui uma segunda parte que se passa dentro de um shopping, proporcionando os melhores momentos do longa. Se, na primeira parte, víamos apenas esses jovens preparando um atentado terrorista, neste segundo momento, vamos ficando mais familiarizados com eles, conhecendo mais de seus anseios, suas ideias, seus medos, seus desejos e suas falhas. 

O fato desses momentos se passarem num shopping proporciona uma excelente crítica, pois, mostra que esses jovens, mesmo com a vontade de sacudirem o sistema com os seus atos extremos, ainda assim, estão plenamente inseridos nesse sistema, já que não são raras as cenas em que assistimos algum deles mostrar desejo por alguma roupa de marca, um celular de última geração, ou até comidas caras, tudo dentro daquele universo do shopping. 

É como se os anseios consumistas e de status deles não conseguissem ser sublimados, mesmo após cometerem atos totalmente subversivos aos olhos do Estado.




Essa segunda parte de "Nocturama" também é pontuada por interessantes estudos de personagem. Em alguns flashbacks, vemos como alguns deles se conheceram, como se deu a reunião para os preparativos ao atentado, etc. 

Óbvio que podemos até não concordarmos com as suas motivações, ou as suas atitudes, mas, é inegável que passamos a enxergá-los com um pouco mais de humanidade, cada um com uma característica distinta, desde aquele que se mostra mais arrogante, até aquele mais consciente de tudo, e que tem medo do que está por vir, até aquele mais imaturo, mais inconsequente, que só pensa em escutar música e se divertir dentro do shopping. 

Porém, todos com uma característica peculiar: fazem parte de uma geração que podemos chamar de "perdida", jovens que se recusam a crescer diante desse mundo louco, e que, acuados em seu inconformismo, partem para atitudes extremistas, mas, ainda estão totalmente cooptados dentro do sistema do qual, em tese, querem destruir. Não obstante a tudo isso, o desfecho ainda nos provoca: quem é o grande terrorista dos nossos tempos?




Como produção cinematográfica, "Nocturama" ganha pontos preciosos graça ao seu diretor, Bertrand Bonello. São mais de duas horas em que vemos uma narrativa que não perde a mão, e que não é, necessariamente, movimentada, mesmo que estejamos falando de um assunto bastante produtivo para os filmes de ação, o atentado terrorista. 

A diferença está mesmo na intenção. Bonello não quer atordoar o seu espectador, não quer "tirar o seu fôlego". Sua pretensão é nos fazer refletir sobre os ideias dessa juventude que está aí, o consumismo, a marginalização, e até mesmo nos jogar na cara uma verdade nua e crua: que o maior terrorista que existe é o Estado. 

E, mesmo sendo uma produção tão crítica, que, de certo modo, perturba o nosso senso comum, ainda conseguimos aproveitar um ótimo estilo narrativo, que usa muito bem o recurso dos flashbacks, mostra diversos acontecimentos sob ângulos diferentes, e ainda possui uma excelente trilha sonora, cujas letras das músicas casam perfeitamente com a história ali contada. Em suma: um baita trabalho de direção. Já, as atuações são intimistas e minimalistas, nenhuma com um grande destaque, mas, todas competentes na medida certa.

"Nocturama", por assim dizer, um filme político, mas, não escancaradamente panfletário. Não que o cinema panfletário não possa ser excelente (está aí Costa-Gavras há mais de 40 anos provando isso), porém, é sempre bom ver também quando um filme consegue ser bastante crítico, privilegiando mais as sutilezas, e expondo, mesmo que de maneira bem pessimista, a realidade dos fatos, sem romantismos, nem utopias. 

Um filme que consegue unir uma crítica social perversa, a um belo exercício de estilo, e ainda com personagens verdadeiramente interessantes, merece aplausos, ainda mais nesse ambiente atual, em que temos não só um cinema, geralmente, de fácil digestão, como também uma sociedade formada por jovens pedidos e adultos inaptos. Pessimista? Sem dúvida. Necessário para reavaliarmos as estratégias das nossas lutas diárias? Com certeza.


NOTA: 9/10



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