DICA DE FILME ("O IRLANDÊS")

Dica de Filme

O Irlandês
2019
Direção: Martin Scorsese


LEGADOS ESQUECIDOS PELO TEMPO

Não existe cineasta vivo nos dias atuais que se compare a Scorsese. E a prova está aqui, com O Irlandês. Interessante notar que, assim como o diretor, os atores principais desse filme estão na terceira idade (Joe Pesci, inclusive, estava aposentado quando topou participar da produção), e o filme, entre os seus temas principais, trata sobre a questão do legado, e mais particularmente, o legado após a velhice, período da vida onde muitos questionam suas ações, e se tudo realmente valeu a pena. Ou seja, O Irlandês dialoga diretamente com os envolvidos diretos do longa, mostrando ser um dos trabalhos mais reflexivos (e bonitos) de Scorsese. 




Importante salientar que a longa duração do filme (3h 29min) é extremamente bem usada pelo cineasta, que mostra aqui um senso rítmico impressionante. Nada é desperdiçado aqui, nem diálogos, nem imagens. As falas, inclusive, são muito bem colocadas no roteiro, dando um dinamismo bem interessante à trama, e fazendo com que ela flua sem nenhum problema. 

Porém, a história em si é tão bem construída que até mesmo as cenas sem diálogos são impactantes (como a de um certo telefonema, por exemplo). São momentos de grande cinema, e que se tornam ainda mais poderosos através das atuações do trio principal do elenco: Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci (todos irretocáveis).


O Irlandês é um filme que pode ser considerado o fechamento de uma "trilogia não-oficial" de máfia do Scorsese, começando com Os Bons Companheiros, passando por Cassino, e terminando aqui. 

O mais curioso é que, de certa forma, esses filmes dialogam com a trilogia de O Poderoso Chefão, de Coppola. Assim como o primeiro filme da saga dos Corleone, Os Bons Companheiros mostra o começo da ascensão na máfia. Já o segundo filme dialoga com Cassino no sentido de mostrar as ações violentas de uma nova máfia já formada. E, por fim, O Poderoso Chefão III, assim como O Irlandês, versa a respeito da decadência de quem, um dia, estava no topo. Sóbrio e brilhante.




E, assim como aconteceu com a terceira parte da trilogia de cinema sobre a máfia mais aclamada de todos os tempos, talvez alguns se decepcionem com o mais recente filme de Scorsese, já que aqui não há muito que torne esse universo glamouroso ou até mesmo cativante. 

Não se pode esperar de O Irlandês, por exemplo, mortes performáticas, ou coisas do tipo. Não. Os assassinatos aqui são secos, brutos, extremamente cruéis. Trata-se de um tom mais realista, que, unido a um enfoque mais melancólico (e até pessimista) em relação ao poder, torna o filme uma experiência em mais reflexiva e minimalista do que esperaríamos em uma produção dessas.

Scorsese, como cineasta, continua no auge. Desde o primeiro minuto, a sua câmera não para, e ele "passeia" pelos cenários (e especialmente pelos personagens) de maneira tão imersiva, que podemos dizer que é "de tirar o fôlego". E, a maioria desses momentos é composta única e exclusivamente de diálogos (todos, inspiradíssimos). 

A câmera do diretor só "descansa" faltando cerca de 30 minutos para o filme acabar, e, coincidentemente, é quando o protagonista, de fato, envelhece, e passamos a contemplar o seu mundo de maneira bem mais intimista. Uma completa junção entre direção e roteiro, que privilegia uma história a ser contada, e não em proporcionar uma mera catarse ao público em seu derradeiro ato. Uma decisão narrativa corajosa, apesar de ter se estendido só um pouco além de que poderia ser. 

Mas, ainda assim, fenomenal.




Falar das atuações nesse filme é meio que dizer o óbvio, porém, diante desse elenco, é impossível não fazer menção a isso. Curioso notar aqui certa inversão de papéis, pois De Niro e Pesci, geralmente são histriônicos e exagerados em Os Bons Companheiros e Cassino, contudo, em O Irlandês, ambos estão contidos, mas, cada uma com um propósito. 

Enquanto o personagem de um é um soldado que, literalmente, precisa cumprir todas as ordens que lhe são dadas, ao mesmo tempo em que serve como mediador para as situações mais difíceis, o do outro é um chefão mafioso contido, porém, extremamente perigoso e inescrupuloso. 

E, no meio deles, temos Al Pacino dado um show como o líder sindical Jimmy Hoffa, numa atuação como a muito não víamos dele. E, é importante prestar bastante atenção nesses três personagens, pois é através da interação entre eles e dos seus respectivos destinos que o filme dialoga com os principais (e complexos) temas que quer passar.

Temos aqui um filme praticamente irretocável, que além de ter uma direção com mão firme, e três atores veteranos dando o melhor de si, ainda presenteia o verdadeira amante de cinema com diálogos inspirados, designer de produção muito bem-feito, trilha sonora bem encaixada e todos os momentos e uma bem-vida abordagem sobre os rumos que se pode tomar para galgar dinheiro e (principalmente) poder, e como isso pode não significar nada, no final das contas. 

É clichê, eu sei, mas aqui temos uma aula de cinema, e o melhor filme de Scorsese desde O Lobo de Wall Street, e que depois dos insossos Hugo Cabret e Silence, mostra novamente que a sua arte não é um parque de diversões.


NOTA: 10/10

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