Dica de Filme ("O Despertar das Formigas")

Dica de Filme

Título: O Despertar das Formigas

Ano de lançamento: 2019

Direção: Antonella Sudasassi Furniss

... ou como o patriarcado anula a vidas das mulheres através de pequenas (mas, significativas) ações cotidianas

Nos últimos tempos, o movimento feminista tem mostrado de que maneira bem contundente como o patriarcado ainda consegue oprimir a vida de inúmeras mulheres pelo mundo, das mais variadas formas, mesmo com claros avanços sociais que tivemos. Porém, nem todas as violências e opressões são escancaradas. Algumas são bem sutis, e de tão enraizadas numa determinada cultura, acabam passando por posturas consideradas normais ("esse é o papel das mulheres", muitos dizem nas entrelinhas). 

E é justamente essa forma de violência mais sutil que a diretora Antonella Sudasassi Furniss expõe de maneira bem certeira em O Despertar das Formigas. No filme acompanhamos uma hora e meia da vida cotidiana de Isabel, que junto com o seu marido e suas duas filhas, formam, aos olhos de todos, uma família comum, feliz e (e por que não?) perfeita. 

Só que nos primeiros minutos de projeção, já percebemos que Isabel não está bem. Sim, ela se comporta como "esperado que ela se comporte", preparando a comida para um monte de convidados, enquanto o marido conversa amigavelmente com todos, enquanto é servido pelas "mulheres da casa" (inclusive, pelas filhas). 

Apenas este início já é mais do que eficiente para entendermos o que a cineasta quer dizer com este filme (já que ela também é responsável pelo roteiro simples, mas, muito eficiente). As cobranças em cima de Isabel são inúmeras: cuidar impecavelmente das filhas, deixar a casa limpa, trabalhar por fora, e ainda "dar" um terceiro filho ao marido, que agora deseja um menino. 

São todas situações comuns que muitas mulheres passam no dia a dia, mas que ainda são encaradas como algo normal dentro de uma família. Só que o filme não se limita a isso (e que, por si, já seria muito), e também amplia essa questão das pressões e gradativas anulações que as mulheres sofrem para o ambiente sexual. O sexo entre Isabel e o marido é basicamente para satisfazê-lo, com ela só conseguindo algum gozo quando se masturba. 

A sutileza e as as boas sacadas da trama mostram até que mulheres podem ser algozes de outras mulheres, como acontece aqui quando Isabel é confrontada pela sogra e questiona pela cunhada. Em suma, ela não "estava cumprindo bem o seu papel de mãe e de esposa". 

Óbvio que fica meio claro o que vai acontecer no decorrer da história, até mesmo por conta do título que o longa tem, que, metaforicamente, passa um recado bem forte. Até mesmo porque, na prática, as formigas são insetos que basicamente vivem para trabalhar, e o acordar que o título do filme traz, explicita bem o desenvolvimento de Isabel. 

Porém, mesmo com essa previsibilidade, a produção tem muita força, mostrando uma visão feminina de situações cotidianas, que no final das contas, são bastante desconfortáveis para elas, e que poderiam ser, ao menos, amenizadas caso o patriarcado não fosse tão forte. Por que homens não podem fazer trabalhos domésticos? Por que cabe a eles a decisão de ter ou não (mais) filhos? Por que o serviço doméstico que elas fazem, muitas vezes, nem é considerado um "trabalho"?

São todas questões muito bem construídas na trama de O Despertar das Formigas, sem precisar ser expositiva ou panfletária. Ajuda muito o desempenho da atriz Daniela Valenciano, que está em basicamente 100% de tela aqui, e carrega bem o peso da personagem em suas mínimas ações e olhares. E, como já destacado, o trabalho de direção de Antonella Sudasassi é muito bem feito, dosando cada momento sem pesar a mão, e deixando a naturalidade dos fatos (e do "despertar" de Isabel) acontecer de maneira espontânea. 

A força de O Despertar das Formigas está nos pequenos gestos, nas pequenas atitudes, nas pequenas palavras que oprimem e pressionam. Tão pequenas que, na maior parte das vezes, passam despercebidas, mas que, no conjunto, fazem um grande estrago enorme. 

Um bonito e necessário filme para esses tempos em que as mulheres ainda são obrigadas a isso ou aquilo simplesmente por serem... mulheres. 

Nota: 8/10