DICA DE FILME ("VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI")

 Dica de Filme


Título: Você não Estava Aqui
Ano de lançamento: 2019
Direção: Ken Loach


 O ser humano engolido pela exploração do trabalho, onde ele não vive (só sobrevive - e mal)

O cineasta Ken Loach é muito competente ao abordar problemas cotidianos pela ótica de pessoas comuns que pouco ou nada pode fazer contra o sistema que os esmaga de alguma forma.

Em "Eu, Daniel Blake", o foco foi a burocracia absurda do estado, que impede o cidadão de exercer seus direitos mais fundamentais. E neste "Você Não Estava Aqui", feito imediatamente depois, o pertinente tema é a precarização do trabalho em diversos níveis (especialmente, o pessoal).

Ao contrário do recente "Nomadland", onde essa questão do trabalho exploratório é vista de maneira um tanto difusa, sem crítica, em "Você Não Estava Aqui" Loach bota o dedo na ferida, e faz o filme com uma atmosfera densa, pesada e por vezes perturbadora.




Acompanhamos a vida de uma família às voltas com a crise financeira ocorrida pós-2008, tendo como agravante a perda da hipoteca da casa, muito em decorrência do desemprego do patriarca Ricky. Não encontrando mais oportunidade de trabalho, resolve fazer entregas para uma empresa local, o que consome 14 horas do seu dia, ao mesmo tempo que consome sua saúde física e mental. 

Paralelo a isso, sua esposa trabalha como acompanhante de idosos (o que não é de forma alguma um emprego fácil), e ainda há os filhos adolescentes do casal, especialmente o jovem Seb, que se encontra numa fase dificílima de rebeldia e incompreensão do mundo. Um caldeirão, portanto, de problemas, prestes a explodir devido a um sistema que consome o indivíduo até a última gota. 

O roteirista Paul Laverty (que já trabalhou com Loach em "Eu, Daniel Blake") consegue construir uma crítica forte à "uberização" da vida cotidiana dos dias atuais, sem soar didático ou esquemático demais. Ele simplesmente nos "joga" no seio daquela família, e aos poucos, vamos conhecendo cada membro ali, suas ansiedades e frustrações, bem como a forma como uma pessoa é "desumanizada" em um trabalho estressante e explorador. 

O foco é Ricky e sua crescente degradação num serviço que só está contribuindo para desmoronar ainda mais sua família, mas, também temos momentos muitos significativos com Abbie, sua esposa, e a relação que a mesma tem com seus "clientes" (e, sim, em algum momento, ela também é explorada nesse tipo de serviço com idosos. 

Sem contar algumas cenas bem emblemáticos com os filhos deles, principalmente, Seb, que, mesmo que ele pareça só mais um jovem rebelde, por dentro, mostra-se arrasado com a situação do pai, o que se confirma nos últimos momentos do filme, num clímax totalmente desolador. 




Ou seja, mesmo que o grande debate que o filme proponha seja a precarização do trabalho atual, e como as empresas têm usado a perda de direitos trabalhistas para lucrar mais em troca da exploração de terceiros, "Você Não Estava Aqui" não se prende excessivamente a essa temática, e consegue abordar com delicadeza e sensibilidade coisas como conflitos familiares e até mesmo a chegada da velhice. 

A progressão dos acontecimentos vai gerando tanta tensão que, muitas vezes, sentimos como se estivéssemos assistindo a uma produção de horror, onde cada momento parece ser pior do que o outro, podendo culminar numa tragédia para aquela família. Como, habilmente, diretor e roteirista conseguem fazer nos importarmos com aquelas pessoas, através de uma construção correta e minuciosa, ficamos mais aflitos a cada sequência em que Ricky parece estar cada vez mais cansado (e descontrolado). 

Ao final, o filme traz uma sensação de amargo na boca, justamente por não oferecer uma conclusão simples, e ao mostrar que o sistema no qual vivemos é mais complexo do que podemos imaginar, e que é fácil sermos explorados, humilhados e desumanizados em troca de um pingo de sobrevivência. Se "Eu, Daniel Blake" versava sobre a burocracia estatal, "Você Não Estava Aqui" é mais abrangente em sua análise, e até mais pessimista e pesado. 

Além da direção sempre segura de Loach (que tem certa semelhança com o naturalismo dos irmãos Dardenne), e um roteiro preciso e enxuto, ainda temos ótimas atuações de todo o elenco, de Kris Hitchen, que faz o Ricky, a Rhys Stone, que interpreta seu filho Seb, sem contar ainda Debbie Honeywood (Abbie) e Katie Proctor (que faz a filha do casal, a Liza). A sensação de angústia e muitas vezes de desespero que esses atores passam com seus respectivos personagens é bastante convincente e eleva bem a qualidade do filme. 




Ao mesmo tempo, é gratificante ver que Loach, no alto de seus 85 anos atuais, continua fazendo cinema de alta qualidade, e preocupado com as agruras e sofrimentos do ser humano, sejam esses problemas decorrentes de qualquer coisa. E, ao fazer um filme tão forte sobre a precarização do trabalho quanto "Você Não Estava Aqui", ele se mostra completamente antenado com os problemas contemporâneos, onde o indivíduo é reduzido a uma mera máquina. Sem direitos. Sem vida. 


Nota: 9/10

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