DICA DE FILME ("Argentina, 1985")
Dica de Filme
Título: Argentina, 1985
Ano de lançamento: 2022
Direção: Santiago Mitre
A condenação do fascismo que sobrou
A história da ditadura militar argentina é basicamente a história de todos esses regimes que assolaram a América Latina entre os anos de 1960 e 1980. Ou seja: cassações, sequestros, torturas e assassinatos em larga escola perpetrados por agentes do Estado. A diferença é que a Argentina resolveu não fazer uma abertura "lenta, gradual e segura" (se é que me entendem). O que fez, isto sim, foi colocar alguns dos comandantes das Forças Armadas no banco dos réus pouco mais de 2 anos após o fim da ditadura.
Essa reparação histórica e um começo de justiça aparecem inicialmente na figura do presidente recém-eleito Raúl Alfonsin, que sanciona o Decreto 158, prevendo assim o julgamento dos militares que cometeram crimes entre os anos de 1976 e 1983, período da ditadura argentina, e que resultou em mais de 30 mil vítimas, entre mortos e desaparecidos.
É quando entra na história o promotor Julio César Strassera, que terá um imenso desafio: reunir provas substanciais para provar a culpa de militares do alto escalão em sequestros, torturas e assassinatos de civis durante a ditadura. Ele, porém, não estará sozinho, pois, terá ao seu lado o jovem advogado Luis Moreno Ocampo, que reúne diversos outros jovens na área jurídica para empregarem forças em equipe na busca de documentos e depoimentos que comprovem as violações de direitos humanos ocorridas apenas alguns anos atrás.
Não é exagero dizer que, até aquele momento, esse era o processo jurídico mais importante da história da Argentina, sendo, não por caso, comparado aos julgamentos de Nuremberg.
Por mais que seja óbvio dizer isso, "Argentina, 1985" é uma história da busca pela verdade e pela justiça. Porém, existe um diferencial. O acerto do filme está em abordar esse alicerce temático (verdade e justiça) para além do julgamento em si. Sim, aqui temos sequêmcias excelentes de tribunal, mas, ao mesmo tempo, também temos pequenos e importantes momentos que engradecem a trama, em micro narrativas que justificam a história maior como um todo.
O que isso significa?
Bem, o filme mostra de maneira muito correta e sem floreios a luta de Julio e sua equipe em busca de depoimentos, documentos e todos os tipos de provas. E o melhor: é tudo mostrado de maneira objetiva, sem nenhuma verborragia ou artifícios narrativos estilosos. Nesse sentido, por exemplo, "Argentina, 1985" está bem à frente de outro filme com temática de tribunal, "Os 7 de Chicago", pois, neste caso aqui, o diretor Santiago Mitre não pretende aparecer mais do que a história.
História essa, por sua vez, que flui como tem que ser: ora tensa, ora dramática, e algumas vezes com suspiros de alegria para comemorar pequenas vitórias dos personagens. Estes, inclusive, estão no filme com os nomes reais das pessoas que, de fato, protagonizaram o julgamento de 1985 lá na Argentina.
Política e militância para dar a cara a bater, sim.
Alguns recursos narrativos muito bons são feitos para dar ainda mais veracidade em momentos fortes e emocionantes, como mesclar imagens reais de arquivo com as do filme em si. São momentos bem orgânicos, numa ótima mistura de "ficção" com documentário. Mas, para além dos recursos narrativos em si, empregados com muita sabedoria pelo diretor Santiago Mitre, diga-se de passagem, o roteiro consegue desenvolver bem seus personagens, mesmo que baseados muito fortemente em pessoas reais.
Muitos dos dilemas de Julio, por exemplo, residem no fato de que, durante a ditadura, pouco ou nada ele fez na prática como jurista para combater o regime. Ele é confrontado com isso uma única vez, mas, já é o suficiente para entendermos suas atuais motivações, receios e angústias. O seu ajudante nessa empreitada, o jovem Luis, tem, por sua vez, um dilema familiar bem complicado, já que o seu tio é militar do alto escalão e sua mãe é bastante devota do lema "Deus, pátria e família" que tanto a ditadura pregou para justificar seus atos violentos.
Outros personagens até poderiam ser melhor explorados, mas, ao mesmo tempo, foi importante se focar apenas nesses dois, do lado dos advogados, ao mesmo tempo em que o filme, sabiamente, dá voz a muitas das vítimas que sobreviveram às torturas. Destas, uma ganhou mais espaço pelo fato de que a sua história é uma das mais aterradoras, quando ela estava grávida e teve que dar a luz no banco de trás de uma viatura da polícia. Ela meio que representa em corpo e alma a brutalidade da ditadura militar.
Importante destacar que o longa também dá espaço para o movimento "Mães de Maio" em duas ocasiões bem emblemáticas, mostrando grande preocupação em dar vez e voz às vítimas, já que quando os algozes falam no filme, é sempre para ridicularizar a figura dos mesmos, ou simplesmente mostrar o quão cínicos e asquerosos são.
Outro ponto positivo é que o filme, muito respeitoso com as vítimas, não mostra nenhum flashback de tortura ou violência gráfica. Ao contrário: a violência está nos relatos fortes e contundentes que várias pessoas dão ao longo dos dias em que o julgamento transcorre, culminando com a parte mais catártica do longa, quando Julio encerra seu relatório com um sonoro "NUNCA MAIS"!
A constar: no ano de 1984, a Comissão da Verdade na Argentina compilou relatórios, entrevistas, depoimentos e toda sorte de documentos que comprovavam as violações de direitos humanos durante a ditadura em uma publicação de título "Nunca Mais". Ou seja, quando Julio profere isso já próximo do final, não se trata de uma frase de efeito, mas, algo envolvo em muito simbolismo para o povo argentino, em uma ferida que ainda está aberta no país. Afinal, até os dias de hoje (em pleno 2022) existem processos que visam julgar e condenar pessoas daquela época.
Enquanto filme, "Argentina, 1985" é praticamente irretocável, com ótimas atuações, uma reconstituição de época muito bem feita, uma direção precisa e um roteiro bem amarrado. Enquanto documento histórico é um importante lembrete do que acontece quando direitos básicos do cidadão são violados em nome de certos valores proferidos de maneira vazia, como pátria e família. Como cinema político, é denúncia contra o fascismo e respeito às vítimas de regimes autoritários.
O melhor cinema do ano (até a presente data).
Nota: 10/10
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