Dica de Série ("O Urso - 1ª Temporada")
Dica de Série
Título: O Urso - 1ª Temporada
Ano de lançamento: 2022
Criação e direção: Christopher Storer e Joanna Calo
A vida como ingrediente principal
De uns tempos pra cá, algumas séries televisivas (as de maior destaque, pelo menos) têm investido em histórias mundanas, comuns, tendo como mote um outro tema que pode, a princípio, desviar o olhar dos mais desavisados. Tipo: usam um assunto para falar de outros bem mais intimistas e complexos.
"Fleabag", por exemplo, não é só sobre uma personagem independente, engraçada e descolada que quebra a quarta parede. "Bojack Horseman" não é apenas uma animação debochada sobre um cavalo falante. "Ted Lasso" está longo de ser somente uma simples história futebolística. E, mais recentemente, "O Urso" não se trata de culinária (ao menos, não é só sobre isso).
O que os criadores e criadoras dessas séries têm em comum é que, de alguma forma, conseguiram captar um pouco da essência da vida cotidiana através de temas específicos, mas, que, ao invés de limitar essas histórias, faz o completo oposto: amplia todas para mostrar sentimentos humanos muito vivos e palpáveis, de uma forma que faça muitos se identificarem com o que está sendo mostrado ali.
Mesmo que você não quebra a quarta parede, não seja um cavalo falante, nem um técnico de futebol, muito menos um chef de cozinha.
O primeiro episódio de "O Urso" já entrega muito bem a tônica que iremos acompanhar em todos os seus 8 episódios: o caos. Vemos inicialmente Carmy, um famoso chef de cozinha, tendo que lidar com um restaurante deixado como "herança" pelo seu irmão. E já nesses primeiros minutos, constatamos o quanto Carmy é um personagem interessante: eufórico e controlador por fora, mas, que parece esconder algo a mais no seu íntimo.
Algo que só vai se revelando bem aos poucos, especialmente na interação com outros personagens, como Sydney, que começa como estagiária no restaurante, e logo se torna chef. É ela, inclusive, que muda a dinâmica daquele ambiente, ao mesmo tempo que, involuntariamente, vai despertando sentimentos problemáticos em várias pessoas de Carmy à cozinheira Tina, e principalmente em Richie (amigo do irmão de Carmy).
Todas essas pessoas (e mais algumas outras que vão surgindo na série) possuem nuances. Nunca são apenas aquilo que aparentam ser. O roteiro, mesmo se valendo de episódios bem curtos, não tem pressas em desenvolver cada um desses personagens, em nos tornar cada vez mais íntimos deles. A direção, muitas vezes, de câmera na mão, dá o tom dessa imersão. Não são raros os momentos em que "estamos" naquela cozinha, em meio ao caos de ter que fazer comidas rápidas, à agonia de uma receita dar errado, e por aí.
Porém, o ponto central aqui é que nunca direção e roteiro esquecem o fator humano envolvido. Se há um ingrediente faltando para fazer determinada comida, isso é mote para mostrar a personalidade de alguém, se há uma simples conversa sobre implantar delivery no restaurante, esse ponto já puxa uma oportunidade para falar a respeito das relações cotidianas daquelas pessoas ali. Nada é desperdiçado, e aos poucos temos ali um caleidoscópio formado por pessoas com suas angústias, seus desejos, seus sofrimentos.
Os temas que "O Urso" aborda são tão variados quanto um cardápio de um bom restaurante: depressão, alcoolismo, suicídio, amizade, relação patrão x empregado, ambiente de trabalho tóxico, pressões familiares, entre tantos outros. Nada de forma gratuita, sacal, sem substância. Há motivos muito convincentes para os personagens se comportarem daquela forma, mesmo que não concordemos com suas atitudes.
Esse tipo de compreensão se deve muito pelo texto afiado e pelas excelentes atuações de todo o elenco. Ninguém aqui é vilarizado ou heroificado. Todos podem agir como babacas uns com os outros, para, em seguida, serem as pessoas mais gentis do mundo. Por que? Bem, porque é do ser humano ser assim. É a vida com suas problemáticas.
É, por exemplo, Carmy tentando provar que pode cuidar do restaurante do seu irmão, deixando a sua memória viva depois de uma relação conturbada entre ambos. É Sydney tentando provar seu valor profissional, mesmo que isso signifique fazer tudo ao mesmo tempo, sem paciência. É Richie com medo de que a tradição do restaurante se perca junto com as lembranças do amigo.
E por aí vai.
Mais uma vez, e felizmente, temos aqui uma série que se vale de um tema específico para abordar as relações humanas em todas as suas riquezas e percalços. Porque, de fato, a vida pode ser uma receita, com alguns ingredientes muito bons, e outros, não. Um tempero certo pode ajudar a deixar o prato mais especial. Ou estragar tudo. Doce ou amarga, a degustação é feita.
No fim, os melhores ingredientes para a vida são as relações construídas com outras pessoas.
Uma das melhores séries do ano. Sem dúvida.
Nota: 9/10
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