Dica de Filme ("Ficção Americana")

 Dica de Filme


Título: Ficção Americana
Ano de lançamento: 2023
Direção: 
Cord Jefferson


A "negritude" é um ótimo negócio 

Uma representatividade de estereótipos, que ajuda a perpetuar preconceitos, consegue ter algo de positivo? Ou a coisa é ainda mais complicada, e até uma representatividade considerada negativa seria um mal necessário? "Que bom que existem certos grupos representados na mídia atualmente. Se estão caricaturais, ok. Faz parte. Pelo menos, estão lá, e ganhando dinheiro". Mas, isso seria bom mesmo, ou, no final das contas, é só mais uma cooptação do capitalismo para empresas lucrarem horrores, e nada de bom vai sair disso?

Bem, são esses questionamentos que o filme "Ficção Americana" consegue abordar de maneira perspicaz, apesar de, às vezes, não ir um pouco mais além na crítica, ou de não ser mais "ácido" e mordaz na provocação. Ainda assim, a história do escritor Thelonious 'Monk', que se vê obrigado a fazer um livro com uma estética "mais negra" para conseguir sucesso editorial, rende uma interessante e provocativa discussão sobre como a indústria cultural lucra com preconceitos, mesmo posando de desconstruída por estar dando oportunidade e visibilidade a alguns grupos (neste caso, os negros). 




Pra não pegar ninguém desprevenido, a coisa aqui não vai numa onda tipo Spike Lee, por exemplo. Ou seja, é tudo mais contido. Tanto é que, intercalando esse plot do Monk escrevendo um livro com uma negritude mais "ao gosto do mercado", temos um drama familiar mais simples e cotidiano. Mas, isso é ruim? Não, pois, serve para nos aproximarmos mais desse protagonista, de quem está ao redor dele, quais seus dilemas pessoais, porque ele tem problemas de interação social, e qual a justificativa, no final das contas, para ele decidir escrever um livro que não queria. 

Em suma, sem esse contexto pessoal, a crítica social talvez perdesse mais força. 

Por isso, esperem um filme que também trabalha bem as relações humanas, especialmente, familiares, e quando é o momento certo, volta a tecer comentários sobre racismo, indústria do entretenimento, e até umas alfinetadas na crítica especializada (o livro de Monk faz muito mais sucesso entre os críticos brancos). Ou seja, ao apelar para momentos mais contidos e simples, a critica principal vai sendo construída, onde cabe até mesmo um questionamento sobre lugar de fala. 

Ok, os negros podem falar o que quiserem em suas próprias obras. Mas, por que é estimulado que só aqueles que falam através de estereótipos raciais são os que fazem mais sucesso?

Nesse sentido, o embate entre Monk e outra escritora (Sintara, que já havia ganho bastante notoriedade antes apelando em seus livros para esses mesmos estereótipos) é muito boa, pois, temos contrapontos interessantes, onde a gente vê que a coisa é complicada. Afinal, se já é difícil para um homem negro se firmar como escritor, o que dirá uma mulher negra? Portanto, mesmo que tenda a concordar com seu protagonista, o filme consegue trazer argumentos diferenciados, e que, no final, questionam, na prática, a própria indústria cultural. 




E, sim, também há aqui uma comédia, não daquelas de dar gargalhadas, mas, divertida, ora em situações banais do cotidiano, ora nos absurdos pelos quais Monk precisa passar, não só para escrever seu livro, mas, para publicá-lo, para vender seus direitos para um filme, e por aí vai. Inclusive, sobre essa última parte, o desfecho de "Ficção Americana" talvez seja o momento mais provocativo do longa. É quando vemos o poder dos negócios corporativos nesse tipo de assunto. E, que mesmo a melhor das intenções têm o seu preço, e fugir dos estereótipos é tarefa árdua.

"Ficção Americana" só poderia ser um pouco mais provocativo, um pouco mais satírico. A história pedia, o momento atual pelo qual vivemos clamava para que o filme fosse ainda mais incômodo do que, no final das contas, é. Não que ele não tenha ótimas e desconfortáveis ideias a serem debatidas. Mas, pareceu, ao final, que direção e roteiro se contentaram com algo mais básico, digamos assim (nesse sentido, o amalucado "Sorry, to Brother You" ou o desconfortável "A Hora do Show" conseguem criticar melhor essa cooptação da negritude pela indústria cultural estadunidense). 



Mesmo se limitando um pouco na crítica social, e às vezes investindo mais no drama pessoal do protagonista, "Ficção Americana" ainda consegue confrontar esse paradigma atual de que basta ocupar espaços que a representatividade estará garantida. Resta saber: qual representatividade? E, consumida por quem? 


Nota: 7,5/10

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