Dica de Filme ("Zona de Interesse")

 Dica de Filme


Título: Zona de Interesse 
Ano de lançamento: 2023
Direção: Jonathan Glazer



A indiferença nossa de cada dia 

Muitas produções pra cinema já falaram da perversidade da guerra, mais especificamente dos horrores feitos pelos nazistas. Até em filme de super-herói, vez ou outra, um vilão abertamente nazi-fascista surge como a perfeita representação da maldade. Mas, expôr o horror de maneira sutil, e ainda assim, perturbadora, é pra poucos. Como é o caso deste "Zona de Interesse". 

Até pela classificação indicativa aqui no Brasil (apenas 12 anos), já dá pra notar que este filme de guerra não será como tantos outros que apelam para o espetáculo da violência explícita (em alguns casos, funciona muito bem, como no recente "Nada de Novo no Front", e em outros, é só expressão de sofrimento mesmo). Aqui, em "Zona de Interesse", a intenção é outra, e, de uma forma muito hábil, consegue passar vários níveis do horror que uma guerra provoca apenas com a sugestão. 




A própria premissa da trama já dá pistas da intencionalidade da obra: a família de um oficial nazista passa a morar ao lado (sim, ao LADO) do campo de concentração de Auchiwtz. O que separa o jardim da casa do local de prisioneiros é apenas um muro com arame farpado. Nada mais. E, aquela família vive ali, nenhuma desconcertante normalidade, fazendo churrascos à beira da piscina, pescando e nadando em um riacho próximo, e crianças brincando e se divertindo.

Tudo a poucos metros onde pessoas (muitas delas, crianças) estão sendo humilhadas, espancadas, fuziladas ou queimadas vivas nos fornos do campo.

Não raro, enquanto as crianças da família desse oficial brincam em seus quartos, ouvem-se tiros, choros, gritos desesperados. Mas, todos ali parecem não se importar. Tratam esses barulhos angustiantes como sons naturais da paisagem. Entre um grito e outro, um casal de jovens namora. Entre um tiro e outro, uma mulher cozinha e limpa a casa. Entre uma súplica de misericórdia e outra, outra mulher pega roupas e jóias trazidas em carrinhos de mão (provavelmente, pertences dos prisioneiros). 

A indiferença aqui é horrível, e passa por uma espécie de burocracia. Oficiais fazem reunião na casa para determinar métodos de execução mais eficazes, fornos para incineração mais potentes. Tudo como se estivessem falando de algo trivial, banal, como se fosse simplesmente o conserto de uma máquina para montar um carro. 

É justamente através dessa abordagem que "Zona de Interesse" possui o seu maior trunfo. A questão não é chocar o espectador com imagens gráficas. O sofrimento está a poucos passos daqueles personagens, a morte está ali, logo atrás daquele muro. Mas, assim como eles, nós, os espectadores, não temos acesso ao que acontece, mas, sabemos o que acontece ali naquelas construções adiante (e, eles, provavelmente também). Ao expôr a indiferença daquela família diante do horror, o filme capta uma crítica que também vale para os dias atuais: estamos perdendo a capacidade de nos sencibilizarmos com o sofrimento alheio?




Basta constatar a opinião pública nos dias de hoje para notar o quanto "Zona de Interesse" fala do passado, mas, chega no presente. Parece que muitos perderam a sensibilidade diante das mortes provocadas pelo Covid, das crianças mortas nas favelas por causa de tiroteios entre polícia e traficantes, das vítimas do genocídio em Gaza, enfim. Muitas dessas tragédias estão bem ali, do nosso lado (mesmo as mais distantes, geograficamente, parecem estar próximas demais devido às redes sociais). E, mesmo assim, diante dessas barbáries, passamos incólumes. 

Assim como a família do oficial nazista, que vive muito bem ao lado de um campo de concentração. 

Então, até que ponto esse campo de Auchiwtz no filme não é uma simbologia para o que deixamos passar diante dos nossos olhos como algo, horrível sim, mas, fazer o quê, né? No filme, ao menos, a família não via os horrores, mas, hoje, nos nossos smartphones, somos bombardeados com imagens de crianças destroçadas. Diante desse processo de desumanização, somos tão diferentes assim dos alemães nazistas que "Zona de Interesse" retrata, mesmo aqueles que não tinha ligação direta com a arquitetura do Holocausto? Uma provocação muito boa, e melhor: sem nenhuma apelação por parte do longa. 

Inclusive, tecnicamente, está tudo perfeito aqui. Direção, roteiro, fotografia, edição, atuações. Tudo em conformidade com uma temática difícil, que, repetindo, não apela para imagens de comoção fácil, e isso se reflete bem na sequência final, onde o patriarca dessa família cujo quintal é Auchiwtz desce cada vez mais as escadas, encara a câmera, e o que vemos é a preservação da memória. Memória para deixar viva a lembrança do quanto os conflitos bélicos nunca têm um real vencedor. E, as perdas são muitas, o que se reflete nas pilhas de roupas, sapatos, malas, e todo e qualquer pertence pessoal daqueles que encontraram seu fim de maneira brutal. 




"Zona de Interesse" é um baita filme de guerra que incomoda e faz refletir pelo o que não mostra, valendo-se das sensações e do conhecimento prévio que temos sobre os campos de concentração para concluir que o que estamos presenciando ali é maldade. Da mesma forma que, neste exato, momento, do lado de nossa casa, na esquina da rua, na cidade, no país ou para além (Gaza que o diga). 

Um tratado sobre como a indiferença e a "ignorância" deixam sequelas indeléveis.

Nota: 8,5/10

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