Dica de Filme ("Dias Perfeitos")
Dica de Filme
Título: Dias Perfeitos
Ano de lançamento: 2023
Direção: Win Wenders
O que extraímos das coisas comuns
De uma certa maneira, Win Wendes sempre foi um cineasta que pareceu amar as coisas mais banais do cotidiano. Um dos seus melhores filmes, por exemplo, é "Asas do Desejo", onde um anjo decide se transformar em humano, e apreciar as pequenas banalidades das pessoas comuns; uma xícara de café, a apreciação de uma flor... Portanto, não deixa de ser surpresa que o seu mais recentes filme, "Dias Perfeitos" trafegue por por essa seara de contemplar as coisas simples do dia a dia e que, muitas vezes, não nos damos conta.
Nele, acompanhamos um pequeno recorte na vida de Hirayama, um homem de meia idade que trabalha em Tóquio limpando banheiros. E, é isso. Mas, seria "só isso", mesmo? Basicamente passamos pouco mais da metade do filme vendo a rotina de Hirayama, que faz tudo quase como se fosse um ritual. Ele acorda, faz seus asseios, rega suas plantas, coloca seu uniforme e dirige sua van até os banheiros que ele precisa limpar. No meio do expediente, ele para em um parque, tira fotos das árvores, e retorna. Depois do expediente, vai comer em alguns pequenos restaurantes de conhecidos e volta para casa.
Porém, há algo mais aí, nessa rotina do personagem, que é o não dito, o que está nas entrelinhas.
A começar pelo papel da música na história, que soa bem mais do que uma mera trilha sonora incidental. Na verdade, ela surge quando Hirayama ouve suas fitas cassetes no carro, Detalhe: todas de artistas relativamente antigos: Patti Smith, Van Morrison, Nina Simone... É como se ele precisasse desses rituais que remetam ao passado para não ser engolido pelo cotidiano do presente, cheio de pequenos atropelos, ingrizias, estresses, decepções e tristezas. Lembrando que ele vive na periferia de Tóquio, em um bairro pobre, e precisa se deslocar bastante até o centro, bem mais rico e abastado do que o local onde ele mora.
Só que esse cotidiano de rituais, muitas vezes, não é como planejamos. O que pode dar errado, e bagunçar as coisas? Os encontros com pessoas. O contato humano. Nunca sabemos quando uma interação com alguém pode ser algo incômodo, penoso até, ou, ao contrário, ser algo benéfico, alegre, que mude um pouco nossa percepção da vida. Nunca sabemos. E, Hirayama também não, seja quando convive um pouco com sua sobrinha, seja quando precisa lidar com um funcionário novato problemático, seja quando encontra um homem numa situação bem difícil.
Os rituais de Hirayama servem para protegê-lo um pouco dos problemas da vida, mas, esta está sempre aí, e esses momentos desconcertantes, mesmo que tirem um pouco o personagem do eixo, servem para que ele, de alguma forma, sinta-se vivo, parte de uma sociedade que pulsa a todo momento, que é repleta de contradições. Há muita gentileza nos gestos Hirayama, mas, também muita melancolia. Algo que se traduz na excelente sequência final, com uma certa música, onde fica claro que o personagem, com tudo o que guarda dentro de si, ainda gosta de estar vivo. E, são esses pequenos atropelos ao longo dos seus "dias perfeitos" que lhe mostram isso.
Também é curioso como Hirayama lida com a juventude e como esta lida com ele. O jovem funcionário que ele supervisiona, por exemplo, é bastante inconsequente, e, por vezes, até o explora, seja fazendo corpo mole no trabalho, seja quando propõe que ele venda suas fitas cassete. Ao mesmo tempo a namorada desse rapaz parece ter certa conexão com Hirayama. Ela aprecia muito a música que ele ouve, e também é tão calada e introspectiva quanto. A sobrinha dele também demonstra gostar desses rituais mais tradicionais, de canções mais antigas, de fotografar a natureza, e por aí vai. É como se, na problemática do cotidiano, fosse mostrado nós que há jovens muito mal pensam no presente, e outros que de alguma forma querem alguma conexão com o que já passou.
Ou seja, "Dias Perfeitos" é um filme que parece que não está acontecendo nada, mas, na verdade, está ocorrendo bem mais do que imaginamos. Só que em camadas mais profundas, longe da superfície. Na verdade, o longa parece querer mostrar como nosso cotidiano, repleto das mesmíssimas ações, pode ser opressor ao ponto de até contemplarmos algumas belezas aqui e ali, mas, que também nos desconecta do humano, do que acontece individualmente e coletivamente numa sociedade repleta de problemas (a divisão entre a periferia de Tóquio e a grande cidade, repleta de tecnologia, e uma tprre imensa, denota bem isso).
Portanto, o longa de Wenders é quase um chamado a uma volta por conexão, especialmente, naquelas interações mais simples, mais "fúteis" do dia a dia. Nem que sejaandar de bicicleta com a sobrinha, ou mesmo brincar com um desconhecido para descontraí-lo de um gravde problema. É, em suma, um belíssimo filme, abrilhantado ainda mais pela singela performance de Kōji Yakusho, que, praticamente calado o filme todo, transmite muita emoção em pequenos e precisos gestos. A direção de Wenders é ótima e, claro, a trilha sonora, excelente.
"Dias Perfeitos" é um filme bem especial para o momento atual, onde parece que, dia após dia, tudo parece igual, com uma rotina desgastante e opressora. E, que manifesta um pouco de vida quando nos conectamos com outras pessoas. Longe de parecer anacrônico, ele é, ironicamente, bastante atual.
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