DICA DE FILME ("Propriedade")

 Dica de Filme


Título: Propriedade
Ano de lançamento: 2023
Direção: Daniel Bandeira



A violência é ser propriedade dos poderosos

"Propriedade" é um filme brutalmente simbólico. É repleto de metpaforas, mas, não deixa de lado a visceralidade das imagens mais angustiantes que o cinema de terror social produz. De cabeça, pode vir à mente produções recentes, como "Animal Cordial" e "Bacurau", porém, "Propriedade" consegue ser mais coeso e instigante, mesmo não tendo a pretensa experimentalidade de ambos. Isso porque o filme do diretor Daniel Bandeira, mesmo tendo diversas alegorias (muito bem colocadas, diga-se), ele é mais direto ao ponto, e mostra como a violência é um ciclo que não tem fim. 

Não é à toa que "Propriedade" já começa com uma cena de grande violência: um sequestro onde o algoz é baleado e morto, e a vítima, Tereza, uma mulher de classe média alta, sobrevive, porém, bastante traumatizada. O começo do filme nos aproxima dessa personagem, seus medos, suas neuras, seus pequenos desconfortos do dia a dia, até mesmo com seu cão de estimação. O marido, herdeiro de uma grande fazenda no interior de Pernambuco, tenta ajudar do jeito dele: com o farto dinheio que possui, compra um carro totalmente blindado. Detalhe: guardem bem esse detalhe, pois, esse carro será vital para os acontecimentos posteriores, quase um personagem a mais na trama. 




Depois que Tereza e seu marido chegam na fazenda tomada por um levante de trabalhadores rurais, é que "Propriedade" entra cada vez mais numa espiral de brutalidades (físicas e simbólicas), e suas alegorias vão ganhando um corpo perturbador. Por falar em corpos, o nome "propriedade" que o filme carrega não é por acaso, já que não somente objetos como dinheiro, carros e apartamentos, são pertences de terceiros, mas, também os corpos e as vidas de trabalhadores, de pessoas marginalizadas, em situação de semi-escravidão. Todos são a propriedade de gente mais poderosa. 

Por isso mesmo é incômodo como essa lógica de poder é invertida quando a vida de Tereza passa a ser a propriedade daqueles trabalhadores amotinados. É aí que o carro blindado "vira personagem", quando Tereza se vê presa no veículo, sob a ilusão de segurança, como se aquele espaço ali representasse a falsa sensação de que a clase média está livre da violência "de fora", dos mais pobres. Por mais que o espaço de segurança seja blindado, sempre há uma chance dele ser subjugado pela insistência daqueles que já sofrem violência há décadas, muitas vezes, desde a infância. 

Ou seja, "Propriedade" opera pela lógica do embate de classes, mas, de uma forma um tanto mais basilar, mais visceral, onde a violência, mesmo que não se justifique, se explique diante daquele contexto. Tanto é que, mesmo que alguns personagens cometam atrocidades, não há heróis e vilões em "Propriedade". Todos perdem. Inclusive, perdem sua humanidade, já que em alguns momentos aquelas pessoas parecem animais irracionais, destituídos de qualquer humanidade, bestializados por anos de exploração. Não é uma luta de classes, portanto, convencional, com pobres e burguesia lutando por poder financeiro, já que aqui o poderio é pelos instintos mais primários, pela sobrevivência, pela vida. 




O que "Propriedade" propõe é os explorados expropriarem os pertences dos seus algozes? A priori, não. O filme não fala, em si, de uma revolução organizada, sendo mais o retrato de um levante pelas necessidades materiais, onde os limites vão se estreitando, o que resta é o emprego da violência. Um ciclo sem fim. É como se o filme retratasse que, a depender das circunstâncias, a brutalidade é um modo de sobrevivência (tanto entre pobres, quanto entre os mais ricos). E, essa constatação do brutal como necessidade do ser humano em determinadas circunstâncias, perturba, e provoca a estrutura social que (ainda) temos hoje. 

Metáforas e linguagens mais diretas vão se intercalando em um roteiro engenhoso, além da parte técnica, que é muito competente. Por sinal, a trilha sonora é de uma perturbação bem palpável, muitas vezes, lembrando um pouco certas produções do Gaspar Noé (mas, sem a apelação sem fim dos filmes do argentino). Inclusive, há muita violência aqui em "Propriedade", mas, nunca retratada com sadismo. Por ela ser também um traço quase natural do ser humano, a violência explícita é uma resposta à sucessivas situações onde a necessidade de poder e sobrevivência fala mais alto. Atuações impecáveis e diálogos duros e secos completam essa história perturbadora, onde a tragédia será inevitável. 




"Propriedade", então, fala de maneira, ora direta, ora alegórica, de algo que sempre perpassou lutas de classes, com algumas delas querendo se blindar contra a violência externa, sendo que essa parece vir, de uma forma ou de outra, mostrando, que, independente de julgamentos morais, cabe questionar: onde começa a violência? Onde termina? Quem está a salvo dela? Quem está mais vulnerável? Perguntas. "Propriedade" propõe mais questões do que respostas, e com uma perturbadora coesão, mostra que a violência pode ser tanto consequência, quanto causa. 

Nota: 9

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