DICA DE FILME (Pisque Duas Vezes)

Dica de Filme


Título: Pisque Duas Vezes
Ano de lançamento: 2024
Direção: 
Zoë Kravitz



Biolionário tem que acabar!

Para funcionar, alguns filmes pedem a nossa suspensão da descrença. O aburso passa a ser possível; afinal, é arte. Mas, as histórias de alguns longa-metragens são tão inacreditáveis, que, ora vejam, acabam parecendo reais, verossímeis. No caso de Pisque Duas Vezes, estreia na direção da atriz Zoë Kravitz, a arte acaba imitando a vida (é só ver os noticiários recentes sobre o "paraíso privado" do bilionário Jeffrey Epstein uu mesmo as escabrosas acusações contra o rapper P. Diddy). Daí, temos um filme cuja premissa pode parecer cheia de "furos" aos espectadores mais exigentes (diria até chatos), mas, a verdade é que a produção conversa muito com casos comprovadamente reais, o que torna o subtexto bem desconfortável. 

Porém, para evitar carregar demais o seu filme com cenas perturbadoras e vazias, Kravitz opta por construir uma narrativa de maneira interessante: os trinta ou quarenta primeiros minutos da produção parecem se arrastar um pouco, mostrando cenas glamourosas, de gente bonita, farras, e uma alegria um pouco farsesca, pueril. Realmente, é uma preparação boa para o que vem em seguida, pois, esse alicerce acaba sendo essencial para demonstrar (mesmo que de maneira um tanto redundante e repetitiva) como aquele mundo ali (e esses mundo aqui, da vida real) são futeis, vazios e um tanto idiotas. O dia a dia de um bilionário qualquer, enfim. 




É quando o filme começa com suas maiores revelações que a história, de forma sagaz da direção e do roteiro, vai mudando de tom, mas, sem abandonar completamente a aura farsesca da coisa, como se aquele universo ali fose propositalmente falso, desde as conversas entre os convidados na ilha particular do biolionário, até os sorrisos de plástico que muitos ali se sentem na obrigação de dar. Sorrisos, esses, que adquirem um propósito mais incômodo quando a trama avança, e revela coisas terríveis ali. E, uma alegoria, claro, para essa felicidade forçada, tanto no mundo das (sub)celebridades, quanto nas redes sociais. Ali, naquela ilha, aos caprichos do poder de um bilionário que simplesmente pode tudo, bão há lugar pra autenticidade.

O filme também trabalha muito bem com a questão das memórias, especialmente, das vítimas de violência. Para não ser tão óbvio e direto na crítica, Pisque Duas Vezes apela (no bom sentido) para soluções mirabolantes para explicar algo que, na prática, na vida real, poderíamos dizer que é estresse ou amnséia pós-trauma. Ou seja, pra embarcar em certas fantasias e ficções que o longa propõe, é necessário que o espectador se dê conta de que aquilo ali é uma metáfora, uma alegoria, e que mesmo fazendo alusão a eventos reais, não estamos falando de um documentário (e, mesmo estes possuem suas licenças poéticas). 

Contudo, um dos assuntos que mais está presente no filme, e que permeia todo o seu desenvolvimento (inclusive, no desfecho) é a questão do poder, ou do desejo de poder. E, pode ser para qualquer coisa: ter poder financeiro, ter poder sobre os corpos das mulheres, ter o poder midiático, ter o poder na narrativa hegemônica, enfim, tanto faz, O importante é usufrir desse poder, e nada mais simbólico do que Pisque Duas Vezes ser feito em um momento onde se está questionando o poder que os bilionários têm, de construir jatinhos espaciais a darem golpes de estado no país que quiserem. O bilionário retratado no filme, inclusive, "só" tem muito dinheiro e fama, mas, não é nenhum gênio (como muitos, de fato, não são, o que talvez explique o incômodo de alguns espectadores, que esperavam um personagem extramamente inteligente). 




Ainda sobre esse tema, a produção tem também expõe as armadilhas do vislumbre que pessoas comuns têm com esse mundo de dinheiro e fama. A protagonista de Pisque Duas Vezes, Frida, facilmente se envanta com o mundo das celebridades, dos ricaços, condicionada a isso devido à super-exposição da mídia, das redes sociais, e todo um contexto social que coloca certa pessoas como semi-deuses apenas porque têm muito dinheiro e são esteticamente bonitos. Em boa parte da projeção, ela está vislumbrada, e o olhar de Frida é o nosso, o que não deixa de ser um olhar ilusório, enganador. É uma crítica bem provocativa, feita de maneira sagaz, sem pesar a mão na seriedade, pois, em alguns momentos, parece uma comédia (mas, também sem forçar demais).

Talvez, em alguns instantes, o filme pareça se repetir demais em relação à sua mensagem (bastante importante, é bom frisar), e muitos provavelmente argumentem que o que resta a Pisque Duas Vezes é a sua fácil pela correria e a violência no final. De fato, em certas circunstância, a história soa repetitiva, porém, isso não chega a ser um grande defeito, já que, mesmo na repetição, a diretora ainda consegue acrescentar algo a mais na trama, algum detalhe a mais para instigar e incomodar a nós, espectadores, e o desfecho pode frustrar alguns que, porvenura, quisessem algo mais básico e clichê, mas, ainda é um baita desfecho que mostra as nuances de uma personagem que talvez subestimássemos. Digamos que tudo se encerra de uma forma bem pouco moralista. 



Ao final, Pisque Duas Vezes é uma boa surpresa enum ano bem interessante para o cinema independente de terror e suspense, que aborda um assunto delicado sem cair no mau gosto, ou em soluções fáceis de bem x mal, e que não apenas denuncia até onde chegamos com poder em mãos, mas, também questiona a nossa atual idolatria por certas pessoas e um estilo de vida vazio, e que ainda pode descambar para barbaridades de diversos tipos caso a "celebridade" achar que pode. 

Num mundo de Elons Musks e outros bilionários que se sentem à vontade pra fazer o que querem, esse é um filme que vem bem a calhar.


Nota: 8/10


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