Dica de Filme (Garota Sombria Caminha pela Noite)

 Dica de Filme

Título: Garota Sombria Caminha Pela Noite
Ano de lançamento: 2014
Direção: Ana Lily Amirpour

Algo caminha pela noite para vingar as mulheres 

Qualquer mitologia pode ser adaptada para caber em vários contextos possíveis. E essa é uma das belezas da arte: reimaginar mitos, fábulas, lendas para falar de outros temas que sejam atuais, urgentes, importante. Garota Sombria Caminha Pela Noite se encaixa perfeitamente nisso, já que aqui tema uma criatura clássica de terror, mas, inserida em um contexto diferente, tento em tempo, quanto em espaço, o que evidencia a sua intenção: fazer uma crítica social que tem a ver diretamente com a sua criadora (np caso aqui a diretora Ana Lily Amirpour, que tem origem iraniana). 

Pra ficar mais claro ainda: é sabido que a vida das mulheres em alguns países comandados por fundamentalistas islâmicos não é fácil, e um deles é o Irã. Portanto, o que Garota Sombria Caminha Pela Noite, de alguma maneira, simboliza é a resistência das mulheres e a vingança contra os homens por meio de uma fábula gótica, situada numa cidade decadente (não à toa, chamada de Bad City no filme),. Nesse lugar, nem todos os homens são escrotos e babacas, mas, a maioria delss está inserida num contexto patriarcal tão enraizado, que, invariavelmente, as mulheres do local serão violentadas por eles. 

Essa reimaginação um tanto feminista de uma criatura clássica do terror se evidencia ainda mais nas atitudes práticas da protagonista. Quando não mata os homens do local, ela assombra um menino para que ele "não se perca", e vire um homem bom. Ao mesmo tempo, algumas características do monstro da ficção que tanto conhecemos também estão aqui, como o poder de sedução, por exemplo. Em determinado momento, ela se interessa por um rapaz, e o seduz, ao mesmo tempo que tem receio do que pode vir dessa relação de ambos. A direção evidencia bem esse clima de sedução quando eles se encontram pela primeira vez, na casa dela, ao fundo tocando uma música envolvente, e a câmera captando os mínimos e lentos movimentos deles. 

Ao mesmo tempo, o que fica evidente na história é o quanto todos ali, de alguma forma, estão sozinhos, em um sentimento forte de desesperança. Em certos momentos, a câmera mostra um personagem pequeno em meio a um cenário enorme e vazio. Essa sensação de solidão é ainda mais reforçada com a fotografia em preto e branco do filme, que às vezes se torna sépia, como se algo ali em Bad City já estivesse há muito tempo sujo, ou apodrecendo. 

O filme também se preocupa em dar camadas aos personagens que não sejam só meros arquétipos, pelo menos em relação aos que recebem maior destaque. A protoganista é, de fato, sombria, arredia, mas, além de passar uma grande solidão, ela mostra um certo senso de justiça em seus ataques, não sendo uma mera criatura em busca de sangue. Ao mesmo tempo, o rapaz por quem se apaixona também não é o arquétipo do garoto porraloca ou metido a sedutor, tendo, inclusive, que lidar com um pai viciado em boa parte do tempo. 

A própria atmosfera do filme é um personagem à parte. Claro, como estamos falando de certa criatura mitológica do terror, o clima é soturno e gótico, mas, também com um certo charme e sensualidade em algumas cenas. A trilha sonora ajuda muito na construção desse ambiente soturno, o que cria uma aura, ao mesmo tempo, deprê e cool (meio que a junção de Nick Cave com Jesus and Mary Chain em termos musicais). Mesmo que a câmera de Ana Lily Amirpour, às vezes, pareça vislumbrada demais com as imagens, demorando-se muito nelas, isso também cria uma identidade para o filme, e as atuações no geral estão boas e competentes. 

Ao final, Garota Sombria que Caminha Pela Noite é uma fábula para os tempos modernos de um velho mito do terror reimaginado para um ambiente decandente onde as mulheres são hostilizadas (e vingadas por essa criatura). Um local bad vibes, onde impera o lixo e a decrepitude, cheio de máquinas industriais para tudo o quanto é lado. Em suma, um universo "masculino e opressor", o que faz desse filme uma história de terror mais realista do que qualquer monstro.

⭐⭐⭐⭐