Dica de Filme

O Crocodilo
2006
Direção: Nanni Moretti


Fazer comédia é difícil, como todos sabemos. Atualmente, boa parte dos filmes confunde, descaradamente, risos com apelação. Então, imaginem misturar esse gênero com drama e sátira política. O primeiro caso que veem à mente seria "O Grande Ditador" de Chaplin? Pois, é. A comparação com o longa "O Crocodilo" não é tão infundada assim, já que a comédia italiana herdou muito da técnica do criador de Carlitos: um riso ingênuo, quase infantil, histrionismo e humor físico na medida certa. E, Nanni Moretti é um cineasta que se aplica muito bem a esse tipo de cinema, pois sempre mostrou sensibilidade ímpar tanto para fazer rir, quanto para fazer chorar, e, no meio disso tudo, conseguir provocar a nossa indignação, mas, de um jeito profundo e inteligente.

"O Crocodilo" é um longa típico da interessante filmografia de Moretti: não se presta a interpretações fáceis, sendo tudo filmado com esmero, mesmo que, à primeira vista, o que vemos causa em certo estranhamento. Em primeiro lugar, temos aqui a paixão pelo cinema, encarnada por Bruno Bornomo, um produtor de filmes B, que anda financeiramente muito mal, e cujas suas produções, verdadeiros pastelões risíveis, só são lembradas hoje em dia em mini-festivais sem grande prestígio. E, ainda por cima, vive um turbulento fim do seu casamento com Paola, com quem tem dois filhos, e que estrelou muitos de seus filmes. No meio disso tudo, surge uma possível salvação: Teresa, que lhe entrega um roteiro que pode render uma produção que o tirará do vermelho. O problema? A história é uma clara alusão crítica ao primeiro-ministro Sílvio Berlusconi.




O grande mérito de Nanni Moretti é saber domar outros gêneros dentro da comédia, sabendo extrair das cenas todo o seu potencial, e não exagerando na concepção dos acontecimentos. Quando é pra ser escrachado, o filme é. Quando é pra ser irônico e sarcástico (na representação dantesca de Berlusconi), o diretor opta, corretamente, por mostrar o quão ridícula é a sua figura. E, quando precisa ser dramático, Moretti expõe uma humanidade tocante, jamais caricata, como na relação muito espontânea e bonita entre Bruno e os seus filhos. Até a questão do divórcio entre ele e Paola é tratada como se deve: traumática em alguns pontos, sim, mas, nada fora do comum. 

Sobre uma sátira política das melhores, pulsa uma comédia de primeira. É hilária a cena de quando Bruno descobre que o roteiro de Teresa é uma crítica a Berlusconi. Isso sem contar nas tentativas do produtor em encontrar os atores certos para encenarem o filme, cada um mais canastrão do que o outro, mas, todos com personalidades bem críveis, sem nada ser forçado. A própria construção do trio de personagens principais é ótima. Bruno, em nenhum momento, é mostrado como uma espécie de herói. Tem seus defeitos (ser bastante ciumento com a esposa), mas, também é cheio de qualidades (o carinho pelos filhos e o respeito pela jovem Teresa). Já esta é retratada, acertadamente, como uma jovem inteligente e inquieta , politicamente falando, porém, que enfrenta um choque de realidade ao ver a recusa de muitos em bancar o seu projeto. E, Paola, a antiga estrela dos filmes de Bruno tem um considerável espaço na trama, e também torcemos por ela, mesmo que a sua história não seja o ponto-chave de "O Crocodilo".




Uma das geniais sacadas de Moretti aqui foi usar o cinema não só para fazer uma óbvia crítica política e à população italiana como um todo, mas, alfinetar o próprio cinema e a indústria cultural, que não pensa duas vezes em financiar todo tipo de lixo descartável em forma de filme, e, ao mesmo tempo, embarga projetos mais ousados e criativos, por medo de mexer em assuntos "tabus". Em muitos momentos, Bruno e Teresa são lembrados pelos demais que já se "falou muito" de Berlusconi, e que o público não vai ter interesse em ir assistir a um filme que conta, mais uma vez, a sua história. Nesse sentido, é sintomático que os produtores locais tenham conseguido, sem maiores dificuldades, financiamento para as filmagens de um filme "pipoca" sobre Cristóvão Colombo.

Só que nada disso surtiria efeito se não tivéssemos aqui um conjunto coeso de talentos. Os atores, por exemplo, estão muito bem em seus papeis. Sílvio Orlando, velho parceiro de Moretti em outras de suas produções, faz um Bruno que, mesmo com algumas falhas de pensamento no início, torna-se cativante ao longo da projeção. Margherita Buy, outra que aparece bastante nos filmes de Moretti, está ótima como Paola, uma personagem que oferece bem mais do que aparenta. E, Jasmine Trinca como Teresa completa de maneira brilhante esse trio, com uma performance direta e segura. Não há como não se encantar pela personagem e torcer pelo sucesso da empreitada dela.



No entanto, a grande estrela aqui é mesmo o bom e velho Nanni Moretti. Conduzindo tudo com mão brilhante, sempre firme na mensagem que quer passar, não há, basicamente, nenhuma cena mal-feita em todo o filme. Também roteirista e criador da ideia original, ele evita ao máximo (e, consegue) burlar muitos clichês. Ao longo da história, não esperem conclusões óbvias, tanto para a vida pessoal dos personagens, quanto para o enredo central, que trata da delicada questão da política, do populismo e da alienação que isso causa nas pessoas. O próprio Moretti ainda dá um jeito de participar de seu filme, numa interpretação digna de nota. É nesse momento que, assim como em "O Grande Ditador", o seu realizador revela toda a crítica que quer passar para o espectador. Sem meias palavras. Claro, direto, objetivo.

Chega a ser um tanto difícil indicar "O Crocodilo" para o público habitual dessas comédias "mais do mesmo". Aqui, ele não vai encontrar baixaria, escatologia, palavrões, piadas de mai gosto e de cunho preconceituoso, entre outras bizarrices do pessoal do "politicamente incorreto". Mas, para quem quiser sair de sua zona de conforto, e pretende assistir a algo crítico, mas, também humano e genuinamente engraçado, temos aqui mais um filmaço de Moretti, que se configura como um dos melhores diretores dos últimos tempos. Um filme, pois, que exige um pouco mais de nós. O esforço, porém, é totalmente válido.


NOTA: 9/10

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