DICA DE FILME ("ANNETTE")
Dica de Filme
Título: Annette
Ano de lançamento: 2021
Direção: Leos Carax
Um musical? Uma comédia? Um drama? Uma tragicomédia? Ou simplesmente a representação da vida, pura e simples, em todo o seu lirismo e crueldade
O cinema de Carax é altamente sensorial e imagético. Suas obras possuem um grande poder textual, é verdade, mas, é na composição visual que seus filmes mais se destacam, onde a narrativa se desenrola através de cada elemento em cena, com cada objeto, enquadramento de câmera ou fotografia servindo a simbolismos e metáforas dos mais diversos.
Foi assim com a sua obra-prima "Holy Motors". E com este mais recente "Annette".
No começo, uma narração convida o espectador a vislumbrar aquela história, meio que numa quebra da quarta parede. Logo no início, sabemos que se trata de um musical. Mas, esperem! Corta para um dos protagonistas (Henry) realizando um show de stand up comedy. Sim, não é só um musical, porém, algo a mais. Logo nessa parte inicial da apresentação de Henry, Carax joga algumas provocações na nossa cara: "Faço comédia para que eu possa fazer comédia sem ser morto".
Aliás, o filme é provocação pura, apesar de ter momentos de singeleza e ternura, dignos dos melhores romances. Porém, a questão aqui é o confronto, o incômodo. Não à toa, umas das mais nítidas críticas que encontramos aqui é contra um público que consome bizarrices e coisas sem sentido, e depois que a questão extrapola, fica horrorizado. Ou não. Dependerá da fama dos envolvidos,
Carax é pura ironia e sarcasmo em alguns momentos de "Annette". Incomoda na medida certa.
O roteiro do filme é tão agudo e, por vezes, mordaz, que é possível encontrar alusões e simbolismos a diversos temas, da exploração de crianças por dinheiro (inclusive, dos próprios pais) à questões mais profundamente filosóficas. Melhor: nada disso soa pedante. Tudo se encaixa, até mesmo o gênero do musical, onde as canções são ótimas e ajudam a contar mais detalhes da história.
Carax parece filmar tudo com a urgência de quem está incomodado com os próprios personagens. Sua câmera tem pulsação, está inquieta, e isso gera cenas magníficas, como no show de stand up onde Henry extrapola uma piada e o público, indignado, quer expulsá-lo dali. Na verdade, há diversas cenas memoráveis em "Annette", ora filmadas com sutileza e delicadeza, ora com energia e movimento.
Mesmo que o gênero seja o musical, a narrativa caminha muito bem, com ou sem canções, o que dá uma sensação de imersão cada vez maior na história. Esta, inclusive, vai escalonando a níveis cada vez mais absurdos, com Carax não tendo problemas em apelar para o exagero, com o intuito de contar o que quer. E, incrivelmente, funciona, mesmo que, em outro tipo de filme, certas situações aqui soassem estranhas e inverossímeis demais.
A criatividade da composição das cenas se dá, muitas vezes, até mesmo com a subversão do próprio gênero dos musicais, onde personagens cantam e conversam, em boa parte das cenas quase que ao mesmo tempo. O domínio narrativo da direção e do roteiro só se perde um pouco da virada do segundo para o terceiro ato, quando a história parece já ter chegado no seu ápice, e não tem mais nada de interessante a oferecer.
Felizmente, é só por pouco tempo, pois, em seguida, a história traz um novo elemento que irá fechar de maneira brilhante o filme, encerrando o ciclo e os debates aos quais se propôs desde o início. É quando vemos de fato a Annette do título, e sua importância para o casal de protagonistas, Henry e Ann. É quando até as coisas mais absurdas fazem sentido, com direito até a mais uma quebra da quarta parede, como se o diretor questionasse a morbidez do espectador em acompanhar a desgraça alheia.
Além da parte musical, que é muito vem composta, não dá pra deixar de elogiar o elenco, em especial, Marion Cotillard e (mais ainda) Adam Driver. Este, inclusive, dá tudo de si, seja nos números musicais, seja, nos diálogos falados, não importunando se o momento é de comédia ou drama. Um trabalho de atuação, enfim, impecável.
Como muitos dos filmes de Carax, é preciso embarcar com tudo na viagem que é "Annette". E, sem preconceitos, pois, no final, não importa se é musical, drama ou comédia (ou tudo junto). A encenação daqui é da vida e de suas idiossincrasias, de seus altos e baixos, das ambições que vão surgindo (das mais nobres às mais pútridas), do sucesso e do fracasso, e outros detalhes que nos fazem ser humanos. .
Um filme diferenciado e com a marca indelével de seu autor.
Nota: 9/10
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