Dica de Filme
Os Amores de uma Loira
1965
Direção: Milos Forman
NOTA: 9/10
Os Amores de uma Loira
1965
Direção: Milos Forman
O DOLOROSO UNIVERSO FEMININO PELO OLHAR DE MILOS FORMAN
Mesmo depois de tantas lutas e conquistas (além de algumas derrotas também), o que é ser mulher nos dias de hoje? Mesmo após certos avanços, ser mulher pode significar inúmeras possibilidades negativas, entre elas, ser assediada, tratada apenas como um objeto de desejo, para depois, ser descartada. Se hoje, essa realidade ainda é palpável, imaginemos, então, como não eram as coisas na longínqua década de 60 num país como a Tchecoslováquia, por exemplo, que ainda vivia sub o jugo da antiga União Soviética (a Primavera de Praga só ocorreria em 1968). E, é desse período "Amores de uma Loira", segundo filme do ainda novato Milos Forman.
A paisagem melancólica do local vai nos envolvendo aos poucos. Vamos percebendo, antão, que estamos numa pequena cidade, daquelas tradicionalistas. Com um porém: a guerra ainda é uma realidade, e soldados chegam e vão a todo momento. As mulheres trabalham num fábrica de roupas, possuindo alojamentos próprios pagos pelo governo, tanto quanto os homens, que também possuem alojamentos particulares. Vez ou outra, é organizada uma espécie de "festa" para juntarem os casais, e tentar levantar a moral dos jovens. E, é em uma dessas festas que boa parte do filme se desenrola. É quando conhecemos Andula, que está com mais duas amigas.
Nesse momentos, a produção mostra o porquê de ter sido classificada como comédia. Simplesmente, as "investidas" dos homens às mulheres são ridículas, patéticas, constrangedoras. Do tirar uma aliança de casamento às pressas, ao pedir para um garçom levar uma bebida numa mesa, e ele entregar no lugar errado, as situações beiram o dantesco, e, de fato, fazem rir com certa leveza. Desencontros vão acontecendo, o que culmina numa sequência chave, que transforma "Os Amores de uma Loira" num drama desconfortável (pelo menos, para as mulheres ou para quem tem o mínimo de senso do que significa abuso). Como consequência, o filme fica mais triste, deixando o humor de lado para dar lugar à reflexão.
O roteiro ainda que paradigmas na famigerada cena do abuso, pois, se tudo indicava que algo de ruim aconteceria com as meninas por causa dos soldados que estavam na festa, foi justamente o homem com trejeitos meigos e educados quem se mostrou o vilão nesse sentido. Só por causa disso, não se enganem: não é fácil julgar os personagens de "Os Amores de uma Loira", principalmente, a protagonista, Andula. Com olhares menos atentos, muitos questionarão as atitudes dela. Por que se sujeita a essas humilhações? Por que não reage? Por que preencher uma carência afetiva desse jeito? Mas, repito, não é simples julgar, e o enredo demonstra bem isso. Todos ali (principalmente, as mulheres) vivem um cotidiano opressor, sem grandes perspectivas na vida, trabalhando em subempregos. Logo, qualquer oportunidade de sair dessa vida é muito bem-vinda.
O retrato dos personagens, foge do caricato, mas, inquieta na medida em que expõe seus piores defeitos. E, os que mais apresentam defeitos de ordem moral aqui são os homens. Muitos que vão às festas encontrarem um par são casados, porém, essa atitude deles é considerada normal. Já, as mulheres, mesmo as solteiras, caso levem um homem para algum de seus alojamentos, logo serão chamadas a atenção. E, isso para depois voltarem ao estafante trabalho nas fábricas. Diante disso, quando Andula encontra uma oportunidade, por mínima que seja, ela a agarra, e, esperançosa, prevê uma condição melhor para a sua vida. Não à toa, a primeira cena do filme é uma das amigas dela contando uma triste composição ao violão, enquanto a câmera passeia de forma desoladora pelos quartos dos alojamentos.
O enredo, sem soar simplista, ainda se propõe a explicar causa e efeito que expliquem a personalidades de alguns personagens. O principal exemplo é do rapaz pelo qual Andula se sente atraída, mas, que se mostra um inveterado mulherengo, além de ser alguém que não demonstra escrúpulos, principalmente, em relação às mulheres. É quando, algum tempo depois, conhecemos os seus pais, e que mostra o porquê ele age dessa maneira, visto que o pai é completamente relapso em relação ao filho, e a mãe é bastante conservadora. Notem, não por acaso, que a primeira cena com eles é uma em que ambos dormem à mesa após assistirem muita televisão. Essa alienação familiar, portanto, alguém que, além de abusar de uma mulher, ainda repete a mesma atitude inúmeras vezes, todas as noites. É risível ver pai, mãe e filho discutindo na cama, enquanto tentam dormir. Ao passo que, na sala, está Andula, e não deixa de ser triste e dolorosa não somente a sua humilhação, mas, a representação de todas as humilhações que, naturalmente, as mulheres sofrem (até hoje).
Pertinente falar que, nessa época, o escritor Milan Kundera, conterrâneo de Forman, não nutria simpatia pelo cineasta. Também pudera: "Os Amores de uma Loira" é a ridicularização da figura masculina, em contrapartida ao sofrimento latente da figura feminina. E, Kundera, machista e misógino que sempre foi (suas obras, destratando a imagem da mulher de todas as formas possíveis, estão aí para serem conferidas), obviamente, não achou de bom grado que a figura do homem fosse tão criticada. Para o autor de "A Insustentável Levez do Ser", o homem é este ser que precisa ser conquistador o tempo todo, enquanto as mulheres são apenas troféus a serem adquiridos. Exatamente como ocorre em "Os Amores de uma Loira". A diferença é que, neste filme, Forman censura esse tipo de atitude. Kundera, ao contrário, exalta.
"Os Amores de uma Loira" é, por assim dizer, peculiar entre as obras peculiares de Forman. Mesmo não tendo a força de um "Estranho no Ninho" ou a crítica mordaz de um "O Povo Contra Larry Flynt", este pequeno grande filme (ainda de sua fase tcheca) já demonstra grande maturidade ao abordar situações relativamente simples, e transformando-as em algo maior, que atinja uma mensagem mais universal. Trata-se de cinema, aparentemente, sem grandes pretensões, que parece que está dizendo uma coisa, quando, na realidade, está dizendo outra. Quando percebemos, já estamos envoltos em alguma forma de tristeza, incômodo e, porque não, até asco. É, por fim, cinema de alta qualidade, e com sutis, mas, certeiras, cargas dramáticas.
NOTA: 9/10
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