Dica de Filme
Título: Eu, Tonya
Ano de lançamento: 2017
Direção: Craig Gillespie
Os abusos físicos e psicológicos, não somente da família, mas, de toda uma sociedade, que alguém é capaz de suportar
A humilhação como parte da existência. Muitos nascem e são criados com esse jugo, com os pais e todos ao redor fazendo de tudo para sabotar seus sonhos, anseios ou simplesmente impedindo de ter uma vida mais digna. A brutalidade como educação, e a violência como forma de comunicação. Some-se a isso pertencer a uma classe marginalizada em seu próprio país (neste caso aqui, o chamado "lixo branco"), e ter de enfrentar esse estigma nos momentos mais cruciais da vida.
Este é, em um resumo rápido, a vida de Tonya Harding até os vinte e poucos anos de idade retratada nesta cinebiografia pouco convencional, avassaladora, indigesta, provocativa e... brilhante.
Tonya, assim como muitos de sua classe nos EUA, sofre preconceito, ainda mais quando tenta ingressar na equipe nacional de patinação, e tem sua inclusão rejeitada por não ter uma família estruturada e "tipicamente americana". Ou seja, não passa uma "boa imagem" de seu país para o mundo. Só que, além disso, há a família e o seu marido. Estes sempre a trataram como lixo (sem aspas mesmo), uns sob a justificativa de que estavam fazendo um bem ora ela (a mãe), ou por amá-la (o marido).
Nisso, tudo o que Tonya queria, e isso fica claro ao longo do filme, era um pouco de amor. Nada mais. Um amor cada vez mais impossível em meio a tantos abusos e humilhações.
O filme "Eu, Tonya" possui inúmeros méritos. Um deles é não se prender às mais conhecidas fórmulas das cinebiografias em geral. Pra acompanharmos a trajetória da protagonista, começamos assistindo a uma espécie de documentário, onde Tonya e cada pessoa com quem esteve envolvida, fala um pouco a respeito dela, e já nesses minutos iniciais, percebemos que algo deu errado na vida dela. A mágoa, o ódio e o rancor reprimidos são nítidos.
É quando, cronologicamente falando, o filme "começa", e entendemos o porquê do clima pesado entre os entrevistados do documentário. Só que o longa não para por aí, pois, no decorrer da história ele faz uso de outros artifícios, como o da quebra da quarta parede. A princípio, pode parecer preciosismo do diretor Craig Gillespie, mas, esse recurso acaba se mostrando fundamental para que nos aproximemos ainda mais de Tonya, especialmente quando ele nos provoca ao olhar para a câmera, em determinado momento, e dizer: "Vocês também são os meus abusadores". Nesse momento, entendemos porquê.
Por sinal, o filme não pega leve nesse sentindo, não tendo pudores de mostrar um pai que se ausenta sem nenhum remorso, uma mãe que "treina" a filha para ser dura, ser uma campeã", e um marido que, gradativamente, a espanca sem qualquer motivo. Só que, neste último caso, Tonya quase sempre reage às agressões com violência também, sem baixar a cabeça. Porém, sem apoio de praticamente ninguém, o relacionamento abusivo continua, enquanto ela luta pra conseguir seu lugar ao sol no mundo da patinação.
Ou seja, é o retrato cru de uma mulher abusada e humilhada desde a infância. Seguindo no caminho oposto aos filmes clichês de superação, "Eu, Tonya" mostra com clareza o quanto um ambiente familiar perverso, bem como a exclusão social como um todo produzem feridas que jamais cicatrizam (pelo menos, não por completo). Lembrem-se: o que Tonya gostaria de ter era apenas um pouco de amor.
Em termos de direção, o filme só perde um pouco (um pouco mesmo) de ritmo em um dos momentos cruciais da trama, que é o vai definir a carreira de Tonya para o resto da vida. Mas, é só por alguns instantes que a produção cambaleia um pouco, pois, em seguida, vem novamente aquela sensação incontrolável de que o longa está consumindo nossas forças, enquanto, impotentes, vemos a protagonista cada vez mais no fundo do poço.
Para além da direção e do roteiro sagazes ao abordar determinados (e espinhosos) temas, temos aqui uma das melhores atuações desses últimos anos. Sim, pois, talvez "Eu, Tonya" não fosse o mesmo sem a entrega visceral de Margot Robbie ao papel, começando pelo fato de que em algumas cenas de patinação é ela mesma em tela, e não uma dublê. Além disso, nos momentos mais íntimos e dramáticos, ela expõe com muita intensidade um misto de força e fragilidade absolutamente desconcertante. Em suma: não só a melhor atuação feminina daquele ano, mas, desses últimos tempos.
O restante do elenco tem um desempenho muito bom, especialmente, Sebastian Stan e Allison Janney, mas, nada que chegue perto do que Margot Robbie fez. Ainda assim, ajudam bem a compor esse painel brutal de abusos e humilhações que a protagonista sofreu na vida (pelo menos, até os 23 anos de idade). Interpretações que, inclusive, poderiam cair na caricatura, mas, que acabam sendo bastante críveis diante daquele ambiente.
"Eu, Tonya" não é um filme de fácil digestão. Incomoda por mostrar situações muito fortes, até mesmo com certa ironia e sarcasmo. Bota o dedo na ferida de uma maneira bem pouco usual, mas, contundente. E, ao final, as sequelas ficam, mesmo que a vida melhore. Ou seja, uma importante oportunidade de debater, sem falsos moralismos, temas como abuso infantil, violência doméstica, e outros assuntos que muitos teimam em ignorar.
Nota: 9/10
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