Dica de Filme

Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância)
2014
Direção: Alejandro Gonzáles Iñarritu


O cinema atinge seu auge quando consegue ser múltiplo em significados. Mas, não só. Tem que ser criativo, pulsante, tentar mostrar algo novo, ou, pelo menos, algo já conhecido de maneira diferente. Fazer uma arte crítica também não é fácil. Existe a vertente mais direta e a que se mostra mais simbólica. Enquanto uma corre o risco de ser panfletária e enervante, a outra, muitas vezes, acaba passando desapercebida pelo grande público.

Eis que o diretor de "Amores Brutos" e "21 Gramas", Alejandro Gonzáles Iñarritu, traz um trabalho com um grande teor crítico à sociedade atual, numa mescla de fantasia com dramas reais. Aqui, ele não se prende a nenhuma fórmula. "Birdman", à primeira vista, pode parecer um filme habitual de super-heróis. Porém, os super poderes que os personagens possuem, na realidade, consistem em saberem lidar com problemas familiares ou conseguirem se relacionar melhor com seus amigos, por exemplo.



Riggan Thomson, interpretado brilhantemente por Michael Keaton, sente-se perdido. Outrora, interpretou nos cinemas o personagem de quadrinhos Birdman, e agora, um tanto decadente, luta para conseguir montar uma peça de teatro. Só que o showbizz cobra seu preço, e não será nada fácil lidar com o ego dos atores, a intervenção dos produtores, e, ainda por cima, passar por problemas pessoais no meio disso tudo (sua filha acaba de voltar de uma clínica de reabilitação).

Só mesmo um super-herói para servir como válvula de escape. Em constantes esquizofrenias, ele pensa ter os mesmos poderes do Birdman, e chega até a ouvir sua voz, como uma espécie de "anjo da guarda", que o inspira a reagir diante das dificuldades e a se reerguer. É com esse herói alado, inclusive, que o filme nos presenteia com uma de suas melhores cenas. Durante um dos devaneios de Riggan, a cidade aparece sendo destruída por um monstro, com soldados atirando a esmo para todos os lados. Nisso, Birdman se vira pra tela:

"É isso o que o público deseja: sangue e destruição! Ele não quer nenhuma conversa filosófica!"


A bem-humorada (e desconcertante) crítica ao cinemão norte-americano não para por aí. A todo momento são citados nomes de astros de Hollywood, como o de Robert Downing Jr., sempre em tom de deboche, mas, um deboche inteligente, sem cair no mau gosto. As celebridades (ou melhor: pseudo-celebridades) também são devidamente alfinetadas. Sobra até para os críticos em geral: "Pra quem não faz arte, resta ser crítico!" Um panorama bem mordaz desse meio, e que, com certeza, não agradará a todos.

Só que o filme não se limita apenas a ser irônico com a indústria cultural. Os mais profundos dramas humanos são abordados de maneira bem espontânea, onde o diretor nunca pesa a mão. Desses, é a tumultuada relação de Riggan com a filha que rende os momentos mais tocantes. Ambos estão em universos distintos, e sempre jogam verdades um contra o outro. Ele condena a geração dela de ser fútil demais, cuja única preocupação é ser "viral", e ela, em contrapartida, diz que seu pai se apegou vergonhosamente ao passado. E, de certa forma, os dois têm razão.


Mas, todo esse universo aparentemente surreal (porém, muito contundente), não teria ficado tão bom se não fosse seu diretor. O que chega a ser espantoso, pois parecia que ele havia se acomodado de vez ("Babel" e "Biutiful" são praticamente cópias de seus filmes anteriores). Com "Birdman", porém, o cineasta se reinventa, e ainda consegue construir uma das obras mais fascinantes dos últimos anos em solo hollywoodiano. E, é o que causa mais espanto ainda, pois o filme é, em certo sentido, anti-hollywoodiano. Corajoso, o sr. Iñarritu.

Claro, não há como deixar de citar a parte técnica também. Alguns efeitos especiais são muito bons, ora explícitos, ora sutis. E, isso dá a tônica necessária às fantasias de Riggan. Contudo, o que mais chama a atenção é o uso sinuoso da câmera, com muitas sequências sem cortes. E, os poucos cortes são imperceptíveis, dando a impressão de que "Birdman" é um grande plano-sequência. Longe de ser tedioso, cada acontecimento é mostrado no momento certo, dando ritmo e fluidez. E, por fim, os atores estão impecáveis, desde o já citado Michael Keaton, passando por Edward Norton, entre outros.


"Birdman" é espantosamente cativante. Seu protagonista, automaticamente, ganha a simpatia da platéia. Toca em assuntos delicados, mas sem chocar ou agredir a inteligência. Bota o dedo na ferida de uma sociedade cada vez mais preocupada com o próprio ego. Desconstrói noções da indústria do entretenimento, em especial, o cinema. Não é um filme difícil, mas requer certo cuidado ao assistí-lo. Talvez os grandes fãs dos heróis de quadrinhos, por exemplo, sintam-se ofendidos com as ironias colocadas. Afinal, a produção toca em universos ditos "intocáveis".

Mas, cabe lembrar: em toda a sua carreira, Iñarritu fez filmes que retratam as mais profundas dores da condição humana. O que esperar, então, de um cineasta assim? Algo do tipo "Transformers"? Não, meus caros, o patamar aqui é outro. Bem mais alto, por sinal.


Nota: 9/10

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