Dica de Filme

Ray 
2004
Direção: Taylor Hackford


Cinebiografias são complicadas. Geralmente, o "cinebiografado" acaba ficando numa espécie de aura de endeusamento misturada com um distanciamento do personagem enquanto pessoa, enquanto humano. Quando se tenta, por outro lado, "humanizar" o protagonista nesse tipo de filme, acaba-se gerando uma forma de julgamento dele, como se fosse possível alguém ser julgado apenas através de uma produção para cinema. "Ray" evita tudo isso, mostrando a figura de Ray Charles com todos os seu defeitos e qualidades, mas, sem fazer juízo de valor da sua pessoa.

Não que fosse difícil cair num certo moralismo em relação ao músico, afinal, ele teve uma vida, no mínimo, peculiar. São muito competentes as partes em que é mostrada a infância pobre dele, quando ele começa a ficar cego, e tem como único apoio a mãe, que, mesmo sendo um tanto rude, faz de tudo para que o pequeno Ray possa ter um pouco de autonomia e, principalmente, autoestima. "Não deixe que ninguém faça de você um aleijado", ele sempre dizia. É  a aura da mãe que vai acompanhar Ray para o resto da vida.




De aprender a tocar piano, passando por apresentações em guetos, seu vício com a heroína, contratos com gravadoras, polêmicas envolvendo a mistura de música gospel com "música do mundo", casamento, filhos, casos extra-conjugais, tudo no filme é mostrado de maneira muito envolvente, com energia e vigor. Interessante notar que a figura de Ray Charles, mesmo com suas eventuais fragilidades, impunha uma forma de respeito natural de quem convivia com ele. Raramente, mencionava-se o fato dele ser cego, sendo, portanto, tratado de igual para igual em muitas ocasiões ao longo de sua trajetória.

Mesmo aqueles momentos que poderiam, facilmente, resvalar num certo pieguismo, como o romance com sua futura esposa Della Bea Robinson, são bem colocados na trama, e não chegam a serem algo esquemático, pois a edição dinâmica permite que o espectador entenda os sentimentos envolvidos naquele instante, mas, não se alongando mais do que o necessário. Esse dinamismo narrativo, por sinal, é outro ponto positivo do filme, fazendo suas inacreditáveis duas horas e meia de duração passarem bem rápido.




O roteiro se dá ao luxo de colocar no bolo até mesmo a questão racial, quando Ray Charles decide não se apresentar no estado da Geórgia para um público segregado, o que terá um alto preço para ele. Mas uma vez, a narrativa ajuda muito, não transformando o assunto em algo panfletário e desfocando a questão principal aqui, que é retratar a vida do músico em seus alto e baixos. Isso também fica notório no trato com o tema do vício do músico com a heroína. Vemos que, fisicamente, ele vai ficando mais e mai debilitado, e até se tornando arrogante com família e amigos, porém, em nenhum momento, o assunto é mostrado com moralismo. Ray estava apenas doente.

E, claro, nada disso no filme não seria possível sem a extraordinária representação do ator Jamie Foxx, que encarnou, como poucos recentemente, um personagem real. Do jeito de falar, na forma como se movimentava, tudo foi brilhantemente passado pela interpretação dele. Não à toa, durante as filmagens, Foxx usou uma espécie de prótese nos olhos que o impedia de enxergar, para que a sua representação fosse mais realística. Deu muito certo. O restante do elenco, sejamos justos, está muitíssimo à vontade também, entregando interpretações convincentes.




Das cinebiografias recentes, "Ray", certamente, é um belo destaque. Sendo, em linhas gerias, uma história de superação, conseguiu retratar muito bem a vida de um dos maiores e mais queridos artistas do século que passou, não se furtando a mostrar seus defeitos como pessoa, e, por isso mesmo, trazendo Ray Charles um pouco mais pra perto do público. Sem mistificações.


"Hit the Road Jack"!!!



NOTA: 8,5/10


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