Dica de Filme ("A CRIANÇA")

Dica de Filme

A Criança
2005
Direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne


TÍPICA CRÔNICA URBANA DOS IRMÃOS DARDENNE, "A CRIANÇA" MOSTRA, SEM MORALISMOS, O COTIDIANO DE UMA GERAÇÃO INCONSEQUENTE

Existe aquela categoria de cineastas da qual você sabe exatamente o que esperar, e mesmo que isso pareça ruim, há muitas exceções em que a previsibilidade de algumas obras não tira o brilho delas. É o caso dos filmes dirigidos pelos veteranos Jean-Pierre e Luc Dardenne, cuja obra (sólida e coerente) sempre aborda temas, aparentemente, pequenos, banais, "do cotidiano", mas, que dialogam com naturalidade com questões bem mais profundas. 

E, "A Criança" é mais um desses ótimos longas que, aparentemente, falam sobre o dia a dia de pessoas comuns, lançadas à própria sorte, porém, que mostram camadas e mais camadas de elementos que, no final, vão se mostrar bem críticos em relação à sociedade, às relações humanas e, principalmente, ao fato de que, mesmo vivendo em condições desfavoráveis, é necessário que se tenha o mínimo de dignidade.




A história basicamente acompanha algumas horas na vida de Bruno e Sônia, dois jovens um tanto desajustados, que estavam um tempo sem se verem, e o reencontro se dá com Sônia já com o filho recém-nascido de ambos no colo. Não tendo onde viver, o casal sobrevive através de pequenos golpes dados por Bruno. 

O interessante é que, nesse aspecto, o filme não oferece nenhum juízo de valor em relação à atitude ambos, em especial, de Bruno, que, em determinada cena, diz que se "recusa a trabalhar pra gente medíocre". Dada a naturalidade dos acontecimentos, aceitamos tal justificativa, e passamos até a torcer pelo casal. 

Só que um acontecimento específico vai colocar em xeque não somente o relacionamento de Sônia e Bruno, como também vai dar uma nova perspectiva a respeito do caráter deste, e mesmo que o filme continue a não emitir juízos de valor, nem nada que soe "fácil" no roteiro, começamos a questiona se aquele estilo de vida tão "tresloucado" é tão libertador assim.

O casal de protagonistas, apesar de não serem necessariamente carismáticos, mostram uma veracidade muito grande em tela. Desde momentos mais descontraídos até as inevitáveis brigas, parece que estamos acompanhando, in loco, a vida de dois jovens "perdidos" numa cidade grande. 

A ambientação decadente de uma Bélgica pouco acolhedora ajuda na sensação de que o futuro de Bruno, Sônia e o bebê não é promissor. É muito frequente eles não encontrarem qualquer ajuda que seja, e não que isso justifique a atitude deles (em especial, a que Bruno irá tomar), mas, esse aspecto da história também mostra um contraponto interessante a respeito de uma sociedade que, em geral, é mesquinha e que cobra dos seus membros certas atitudes, mas, que, ao mesmo tempo, são indiferentes aos problemas dessas pessoas. 

Ou seja, o foco da história é no casal, mas, a trama não deixa de apontar pequenas, mas, precisas, críticas aqui e acolá.




Como em geral ocorre no filmes dos irmãos Dardenne, a fluidez narrativa é muito boa, dando espaço para os acontecimentos serem mostrados na hora certa, no momento certo, às vezes, mais acelerada, às vezes, mais devagar. 

O roteiro (também escrito pelos diretores) explora bem as nuances dos personagens, não se deixando levar por artifícios simplistas ou maniqueístas. Os personagens da história não são virtuosos, não possuem grandes qualidades, mas, são humanos, em todas as suas falhas, e isso é muito bem explorado no roteiro, inclusive, fazendo, no desfecho, uma ótima reflexão no quesito de nos provocar sobre "quem seria" a criança do título. 

No campo das atuações, todos mostram grande empenho, em especial, Jérémie Renier e Déborah François, que interpretam os personagens principais. Não são interpretações "carregadas", e, mesmo assim, são performances que o necessário naqueles instantes de maior dramaticidade.



Além de um ótimo filme que fala sobre uma juventude "perdida", e, indo mais a fundo, a respeito da questão da maturidade, "A Criança" é a prova da invejável regularidade com que Jean-Pierre e Luc Dardenne conseguem entregar obras, ao mesmo tempo, simples, mas, bonitas e reflexivas. Sim, em certo aspecto, previsível. 

No entanto, torna-se muito agradável ver o comprometimento desses cineastas em entregarem sempre um filme que seja relevante ao dialogar com essa geração. Trata-se de uma arte com princípios bem sólidos, e se isso desagrada aos cinéfilos ávidos por algo mais subversivo, sem problemas. Existem filmes mais "exóticos" por aí, digamos assim. 

Os Dardenne, por outro lado, continuam na sua jornada de fazerem obras que provoquem um certo senso de moralidade em nós (por mais démodé que isso possa soar nos dias de hoje).


NOTA: 8/10



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