DICA DE FILME ("Cafarnaum")

Dica de Filme

Cafarnaum
2019
Direção: Nadine Labaki


Diretora do ótimo "E Agora, Aonde Vamos?" se vale do cinema-verdade para construir o seu filme mais cru e impactante


O cinema é um bom palco para reflexões (algumas, nem sempre tão memoráveis, ou até mesmo de gosto duvidoso). Ainda assim, é um ambiente propício para levantar temas, questionamentos e bons debates. 

Não que seja essa a única função da sétima arte, porém, é verdadeiramente gratificante ver quando um realizador (neste caso aqui, uma REALIZADORA, é bom frisar) consegue trafegar por áreas complicadas de um cinema mais cru, mais perturbador, conseguindo extrair muita reflexão desse material, e ainda ser um ótimo cinema em seus aspectos mais básicos (atuações, direção, edição, etc...). 

Cafarnaum, novo filme da cineasta Nadine Labaki, enquadra-se nesse contexto, apresentando uma história muito tocante, e que, de tão pesada, parece mais documental do que ficcional.





O peso de uma vida

Claro que é totalmente injusto fazer qualquer tipo de comparação (cada produção tem os seus próprios méritos), mas, não deixa de ser interessante notar que Cafarnaum poderia, em determinado momento, ser quase um Túmulo dos Vagalumes em live action, tirando, obviamente, a ambientação e a época histórica. Isso porque ambos não se furtam em colocar crianças como vítimas reais de um sistema bem maior da miséria humana. 

E, miséria em todos os sentidos, pois, ao mesmo tempo em que temos em um ambiente tão devastado criaturas no seu mais alto grau de inocência, temos também a ala dos adultos, que se recusam a oferecer a mínima ajuda que seja (com raras exceções). Uma lei da sobrevivência injusta. Ambos (Cafarnaum Túmulo dos Vagalumes) conseguem explorar em suas nuances as emoções mais devastadoras possíveis.


Voltando exclusivamente a Cafarnaum, acompanhamos a trajetória (sofrida é pouco) de Zain, um menino que, nos seus 12 anos de vida, precisa se virar como pode, numa família que só faz crescer, e que diante da miséria latente em que vivem, não tem escrúpulos em realizar barbaridades para tentar amenizar aquele sofrimento (por mais ilógico e moralmente reprovável que isso seja). 

É contras essas bestialidades que Zain se rebela contra os pais, e contra tudo o que a sociedade que o oprime representa. Habilmente, Labaki emprega uma narrativa que começa no "meio", para voltar ao "início", e depois, encaminhar-se para o "fim". Essas idas e vindas servem para que possamos conjecturar o que aconteceu com aquele menino, evitando, assim, julgamentos simplórios. Isso porque seria muito fácil apontar os culpados logo de cara, algo que o filme não faz, mostrando que, de uma certa forma, há mais complexidade nessas situações do que imaginamos.





Posicionamento claro

Porém, não se engane. O filme toma partido, sim. E, toma partido exclusivamente por Zain (mais precisamente por uma vida mais feliz para ele). Nada mais oportuno, já que é através do olhar do menino que enxergamos o mundo, com a câmera quase sempre acompanhando os acontecimentos pela ótica dele, num posicionamento baixo, o que dá deixa o longa com um ar ainda mais opressor e angustiante. 

A própria câmera na mão remete bastante a esse cinema-verdade, que tem como um dos seus expoentes máximos Cidade de Deus. Longe disso ser um mero exercício estético, essa movimentação das imagens serve para nos inserir mais naquela história. É quase como se sentíssemos o cheiro daquele lugar, e, acredite: a sensação não é agradável. Mas, é, entre outras coisas, um exercício de empatia.


Nota-se que o filme vem recebendo algumas críticas rasas por onde passa. A primeira delas é que ele manipula demais os sentimentos dos espectadores. Esquecem-se essas pessoas, no entanto, que praticamente toda e qualquer expressão artística faz isso (até os documentários). Por mais "isento" que seja o realizador de uma obra de arte, ele irá expressar a sua opinião sobre determinados temas de alguma forma. Cabe ao espectador concordar ou não. 

Aqui, em Cafarnaum, a opinião de Nadine não impede a trama de funcionar (ao contrário: complementa-a). E, dados os assuntos delicados abordados aqui, a realizadora se sai muito bem, expondo situações de maneira crua, mas certeira, em diversos momentos. Alguns, de maneira muito superficial, diriam até que o filme flerta de alguma forma com o higienismo, mas, isso seria, em linhas gerais, desconsiderar que a produção se baseia na visão de um menino de 12 anos que já sofreu horrores demais para alguém de sua idade, e cuja visão é totalmente válida (pelo menos, para o debate ser levantado) dentro daquele contexto.





A urgência de um debate

Porém, nada do que o filme levanta em termos de debate surtiria efeito sem a brilhante e incisiva atuação de Zain Al Rafeea, que mesmo diante de um bom elenco, consegue imensamente se destacar dos demais. Uma interpretação consistente e que transmite verossimilhança em cada olhar e gesto. É ele quem carrega o filme nas costas, apesar das visíveis qualidades da produção, como a direção certeira de Labaki e a edição que vai nos ambientando entre passado e presente de forma a nunca parecer que a narrativa está ficando confusa. 

Alguns momentos da trama, ok, poderiam ter sido limados, como uma cena lá perto do desfecho, quando a produção meio que dá uma "amenizada" em tanto sofrimento. Já a cena final é uma das mais impactantes do cinema recente. Simples e direta, é de uma tremenda carga dramática para quem acompanhou vivamente um pouco da história do protagonista mirim desse inquietante e perturbador enredo.


Carfanaum é o típico caso de produção que poderia ter apelado para meio mundo de sentimentalismos baratos, ou ter escolhido o caminho mais fácil para os seus conflitos. Claro, dado o seu nível de crueza, nem todos irão conseguir suportar vê-lo. 

Afinal, como muitos adultos retratados no filme, boa parte das pessoas ignoram que histórias como a de Zain realmente existam, e que estão, muitas vezes, ali, na esquina de casa. Não precisando, portanto, que o seu país esteja em guerra, ou coisa do tipo. Basta que a miséria seja vista como algo natural e inevitável que alguns desafortunados precisem passar.



Para os que ignoram tamanho sofrimento, Cafarnaum seria um filme mais do que indicado. No entanto, será que conseguiriam NÃO desviar o olhar?



NOTA: 9/10


Ficha técnica
Direção: Nadine Labaki
Elenco: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Boluwatife Treasure Bankole, Kawthar Al Haddad, Fadi Kamel Youssef, Nour el Husseini, Cedra Izam e Nadine Labaki
Roteiro: Nadine Labaki, Khaled Mouzanar, Georges Khabbaz e Khaled Mouzanar
Duração: 2h00
Nacionalidade: Líbano e França
Classificação: 14 anos

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