DICA DE FILME ("CORINGA")

Dica de Filme

Coringa
2019
Direção: Todd Phillips


Nem de heróis, nem de vilões... Coringa é um filme de (e sobre) empatia

O bom cinema (aquele que fica "cravado" na sua mente) não é feito de obviedades. Apesar de "produtos enlatados" para consumo rápido serem lançados todo dia (e fazerem muito sucesso), o que fica para a posteridade mesmo é algo feito com o mínimo de audácia.

A questão é que, neste caso, as interpretações de uma obra audaciosa (e um tanto controversa) podem, sim, ser muito rasas, o que acaba diminuindo o que aquele filme quis expôr. Mas, inevitavelmente, sempre haverá julgamentos precipitados de qualquer obra.

Dito isso, Coringa pode ser classificado, a priori, como um filme de emoções intensas, porém, ele é muito mais do que isso, mesmo numa primeira assistida. Muitos gostarão, e outros detestarão, mas, pouquíssimos conseguirão ficar indiferentes ao que a nova produção da Warner tem a oferecer.

Por que (repito: POR QUE) um filme baseado em quadrinhos conseguiu chegar tão longe?




Talvez a resposta para essa pergunta seja simplória, a princípio, mas expõe bem uma das principais qualidades deste filme aqui: ele é ousado. Mais ainda: ele é corajoso. Sim, pois num tempo em que o público geral não consegue interpretar bem obras de arte (vide o subgênero de "Final Explicado" presente em vários canais do YouTube), Coringa não tem medo de pisar em terreno de difícil trajeto. Com isso, ele expõe determinadas nuances da psiquê humana de forma espetacular.

Não, aqui não se trata do velho preto no branco presente em muitos filmes baseados em quadrinhos por aí, que resumem tudo num tosco e ofensivo (à inteligência) bem x mal. Em Coringa, mesmo que todos os personagens do filme pareçam podres e condenáveis, há ali certos detalhes mostrando que nem todos os habitantes daquela Gotham são maus. Porém, são, no mínimo, coniventes com a maldade, o que é muito significativo para a "transformação" do protagonista.

Com esse filme daqui, os seus realizadores escolhem um tema bastante delicado para abordar nos dias atuais: a empatia. Incomoda porque aponta o dedo para cada um dos espectadores, cabendo a nós sermos a bússola moral que decide o certo e o errado na trama. E, isso é genial (ao mesmo tempo que complicado, dada a sociedade que estamos construindo hoje, na vida real).

E, não, eu não me refiro a ter empatia por um vilão, ou que atos violentos devam ter alguma justificativa. Longe disso. Seria, inclusive, muito simplório acusar o filme de fazer apologia a questões dessa natureza, visto que ele, mostra, sim, as consequências dos atos da sociedade para com Arthur Fleck, e deste para com a sociedade. E, sem moralismos baratos.




A questão é bem mais complexa, e o roteiro de Coringa (também a cargo do cineasta Todd Phillips) habilmente desconstrói um dos mais icônicos vilões dos quadrinhos para depois reconstruí-lo, mostrando que o processo que leva ao mal e à perversidade é bem mais complicado do que roupas fantasiadas, frases de efeito, e coisas do tipo.

Afinal, Arthur Fleck, que mais tarde se transformará no Coringa, não apenas sofre com fatores externos (dependência de seguridade social, falta de emprego, inabilidade social, etc), mas, também possui sérios problemas psicológicos, muitos deles adquiridos pelas surras constantes que a vida dá (metafórica e literalmente falando). Portanto, aqui não temos apologia à violência, ou qualquer coisa do gênero, como muitos temiam. Contudo, o filme é incomodamente aliciadora.

Como assim?

Bem, ao colocar o Arthur em situações limite, o roteiro força a sua empatia por ele através de inúmeras questões que perpassam por sua vida. Ao menos uma delas vai atingir em cheio boa parte dos espectadores (abuso, exclusão social, doença na família, desemprego, depressão, dependência do Estado...). Não é algo que chegue a ser nocivo, mas, quanto mais vemos o protagonista se afundando num poço sem fim, mais nutrimos certa piedade por ele, mesmo que chegue uma hora em que Arthur comece a fazer coisas terríveis.

Porém, não se engane. A coisa não é tratada com leviandade. Há uma forma bastante madura da obra lidar com tudo o que é apresentado aqui, sem juízos de valor óbvios, nem conclusões rasteiras. Quem nutre simpatia por frases de efeitos rasas na vida real ("bandido bom é bandido morto", "direitos humanos para humanos direitos" e "armas salvam vidas"), certamente detestará o filme. Em suma: não espere respostas fáceis.

Na verdade, não espere, sequer, respostas.




Redenção? Lições de moral? Mensagens edificantes? O filme vai além de coisas que, por ventura, sejam facilmente esquecidas na saída do cinema em direção à próxima sessão de um multiplex qualquer. Porém, nessa ânsia de interpretar somente o que se quer, certamente, Coringa será acusado de fazer apologia a algo errado, ou, no mínimo, controverso.

Só que, na realidade (e isso está bem claro aqui), uma de suas mensagens mais relevantes é que numa sociedade doente, que não cultiva valores que deveriam ser básicos (como a empatia, por exemplo), a tendência é elegermos como heróis (ou "mitos") pessoas nefastas (qualquer coincidência com pessoas vivas ou mortas é mera "coincidência"!).

Certamente, essa é uma abordagem mais crível do que a velha luta do bem x mal, ou mesmo de que o Coringa surgiu ao cai num tonel de produtos químicos, e se "transforma" em um monstro. Uma abordagem válida e, (com o perdão do clichê) necessária para a sociedade atual.

Sim, mas e os outros aspectos do filme, além de uma mensagem estrategicamente controversa, mas, poderosa?

Bem, falar a respeito das qualidades cinematográficas de Coringa (o filme) é, ao mesmo tempo, tarefa ingrata e prazerosa. Mesmo que se fale "tudo" a respeito da obra, certamente, a abordagem será incompleta, e aqui estamos diante de algo tão único, que tal tentativa chega a ser injusta.

Pode-se falar, por exemplo, da atuação estupenda de Joaquim Phoenix, que é cheia de detalhes interessantíssimos, como a sua gargalhada forçada (fruto de um distúrbio psicológico real), ou do modo como ele usa a dança como forma de demonstrar a "libertação" de Arthur. Um trabalho de "entrega"poucas vezes vista no cinema recente.

Ou então podemos discorrer aqui sobre a direção apurada de Phillips, bem como o seu roteiro, que peca apenas pelo excesso de expositividade em alguns poucos momentos. E, o que dizer da trilha sonora, que vai de músicas pop da época (anos 70/80), à incômodos sons rasgantes de violinos distorcidos, e que causam um tremendo desconforto, e que ficou a cargo de Hildur Guðnadóttir, a mesma que fez a trilha da serie Chernobyl?




Pois é.

Pra quem possui o mínimo de gosto apurado por cinema, certamente saberá apreciar o espetáculo que Coringa proporciona. Some-se a isso uma produção que toca em feridas sociais mais do que abertas, dispensando alegorias fáceis, e provocando o espectador a cada momento.

O filme não se esquiva dos problemas que aborda. Se um filme assim ainda causa tanta controvérsia, o problema real não está em uma arte que passa uma suposta "mensagem errada" (o que não é o caso de Coringa, salientando novamente), e sim, em um ambiente que, convenientemente, joga para debaixo do tapete os seus problemas (assim como jogam para debaixo do tapete diversos "Arthurs Flecks" por aí).

Não que esses seres marginalizados venham a se tornar psicopatas homicidas com obsessão por morcegos. Mas, certamente, essas pessoas são fruto de nossa doentia apatia, e, acreditem: não é um herói mascarado que irá nos salvar no final.

"A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse".
(Arthur Fleck)


NOTA: 10/10


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