Dica de Filme ("Piedade")

Título: Piedade
Ano de lançamento: 2020
Direção: Cláudio Assis



O cinema-verdade cheio de poesia de Cláudio Assis encontra o equilíbrio perfeito em Piedade

O termo "piedade" pode ter muitos significados, porém, o mais comum é associar essa palavra à compaixão pelo sofrimento alheio, ou pela misericórdia. Não deixa, portanto, de ser irônico que o novo filme de Cláudio Assis se chame Piedade, justamente, o sentimento que mais carece nos personagens da história, que buscam sempre um pouco de consolo (e até de compaixão) diante das suas agruras, desde as mais banais e triviais, às mais complexas e pesadas. 

Além disso, é uma grata surpresa que esse filme tenha sido feito numa época onde o cinema pernambucano (mesmo com todo o prestígio lá fora) esteja fazendo sucesso com produções medíocres como Bacurau. Claro, a pegada aqui é outra. Cláudio Assis, mais periférico, sabe exatamente o que colocar na boca dos seus personagens, sem gracinhas inúteis ou frases e cenas pedantes. É cinema cru, o mais próximo da realidade possível, mas dotado de certa beleza também.




Aqui, vemos um Recife (e seus arredores) caótico, mas, sem caricaturas mal-feitas cujo intuito é não "perder a piada" ou a "frase de efeito". Assis sabe onde quer chegar, e mesmo que essa visão da vida em Piedade seja um tanto amarga e pessimista, há espaço para bonitos momentos de devaneio. Desde a vila de pescadores assediada por uma multinacional do petróleo, ao cinema pornô no centro da cidade, tudo é filmado com minimalismo e calma para extrair daqueles ambientes algo simples (mas, poderoso). 

Um aspecto que conta muito a favor da produção são seus diálogos (também uma marca registrada de Assis), que vão direto ao ponto. É como se, pelas lentes do diretor, estivéssemos vendo algo real, palpável, mesmo que o filme se dê ao luxo de seus simbolismos de vez em quando, o que não é demérito nenhum, já que aqui faz sentido, e é algo que dialoga bem com a trama principal. 

O tubarão é um dos simbolismos mais presentes em Piedade, e não é à toa. Num olhar mais superficial, trata dos ataques desses peixes no litoral nordestino devido à destruição de seus habitats. Mas, a figura do tubarão também é uma boa metáfora para se referir à alguns personagens do filme (e até mesmo empresas), que, muitas vezes, comportam-se de maneira até mesmo mais feroz. Pode parecer algo meio óbvio dito assim, mas, na lógica de Piedade, isso tem uma força imensa. 




Outro ponto bastante positivo são os personagens que transitam no universo do filme, e a forma como são, gradativamente, construídos. Podemos dizer que não há maniqueísmo barato aqui, apesar de alguns, notadamente, comportarem-se de maneira mais asquerosa. Ainda assim, o roteiro (escrito por Hilton Lacerda, Anna Carolina Francisco e Dillner Gomes) faz questão de não santificar, nem demonizar ninguém, expondo uma vida real mais complexa do que algo simplesmente preto no branco. 

Nesse sentido, ajuda muito as atuações, todas naturalistas, e sem grandes afetações, o que permite com que identifiquemos cada um daqueles personagens como sendo críveis de realmente existirem, e de esteram ali, na esquina na nossa rua. Fernanda Montenegro, Cauã Reymond, Matheus Natchergaele e Irandhir Santos estão bastante à vontade e despidos em seus respectivos papéis (algo que também anda em falta no cinema pernambucano recente, onde as interpretações são carregadas demais numa caricatura que beira o incômodo). 

A fotografia de Marcelo Durst (que já havia trabalhado com Assis no anterior - e fraco - Big Jato) também é outro diferencial, especialmente quando o diretor passeia com a câmera em planos longos e ângulos inusitados, dando uma imersão muito poderosa a cada ambiente mostrado. A trilha sonora de Jorge Du Peixe (da Nação Zumbi) consegue dar o ar mais visceral que algumas cenas pedem, mas também, em outros momentos, transmite um sentimento mais triste e poético.




Só um adendo: Piedade também é o nome de uma das praias mais famosas de Recife, e também uma das que mais sofreram com ataques de tubarões nos últimos anos. É como se os personagens deste filme aqui buscassem por esse sentimento de compaixão até mesmo no lugar onde moram. O que não deixa de ser uma ironia do destino, já que cercados geograficamente por Piedade, na prática, esse é o sentimento menos recebem ou oferecem. 

Nessa desesperança onde dramas familiares (com bastante ênfase nos erros de um patriarcado tacanho) e ativismo se misturam, Cláudio Assis fez um baita filme (talvez o seu melhor desde Amarelo Manga). Uma produção contida em alguns momentos, e em outros, até mesmo engraçada. Mas, ao final, triste. Triste como deixar sua história para trás, e o único resquício deixado são imagens em inteligência artificial em meio a uma selva de concreto, verticalizada em prédios a perder de vista. 

Um destino amargo para quem, no final das contas, só queria um pouco de... Piedade. 


Nota: 8,5/10



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