Dica de Filme ("O DIABO DE CADA DIA")

Dica de Filme

Título: O Diabo de Cada Dia
Ano de lançamento: 2020
Direção: 
Antonio Campos



A fé e o poder como fachadas para o que de pior o ser humano é capaz 

Alguns tipos de filmes são pesados. Não no sentido de serem explicitamente violentos, ou qualquer coisa do tipo, mas, "carregados", psicologicamente falando. Em alguns momentos, tão brutais que podem deixar sem chão quem assiste. 

O Diabo de Cada Dia, mais recente produção da Netflix, tem um pouco dessa aura incômoda durante (quase) toda a sua duração. E, mesmo assim, é o tipo de produção difícil de ignorar, trazendo alguns bons questionamentos, especialmente no que se refere à religião. 

Sim, o espectro da religião é espinhoso e delicado de se abordar, e é preciso certo traquejo para não descambar nem para a caricatura vazia (Divino Amor), nem para a apologia ao fanatismo (Deus não Está Morto). Aqui, felizmente, a coisa está mais para um Sangue Negro, com estética que remete um pouco os filmes dos irmãos Coen (mas, sem momentos involuntariamente engraçados). 

Em O Diabo de Cada Dia, a questão principal está em analisar como certas convenções sociais nos ajudam a mascarar o nosso lado mais sombrio (com destaque para a hipocrisia de cunho religioso). 




Não que alguns personagens aqui realmente não sejam realmente convictos de seus ideais religiosos. Porém, uma boa parte usa justamente de seu poder de persuasão, de sua boa oratória, para conseguir vantagem em cima dos outros, tendo sempre a desculpa de que se tratam de designíos divinos. Outros, entorpecidos por uma fé cega cometem coisas atrozes, que por mais absurdas que possam parecer, basta olhar para os noticiários atuais, e enxergar o que os ditos "cidadão de bem" são capazes. 

Sim, o filme dialoga muito bem com a contemporaneidade, mostrando que certos aspectos são atemporais. E, isso se reflete logo nos primeiros minutos, quando acompanhamos o primeiro desses personagens que parecem entranhados numa complexa e sádica teia divina de acontecimentos absurdo: o ex-combatente de guerra Willard Russell.

Após um rápido vislumbre dos horrores que Willard presenciou na Segunda Guerra (um diferencial interessante, já que geralmente os filmes abordam esse conflito de maneira mais heroica e ufanista), vamos acompanhando seu retorno à pequena cidade onde morava, e tentando constituir família. Mas, como o próprio título do filme sugere, parece sempre haver um "diabo" na nossa vida, a cada dia, para nos desestabilizar. 

O filme, então, intercala bem outras histórias ao longo de sua narrativa, que vão se cruzar em algum momento. Algumas dessas tramas paralelas são boas (com da dupla de serial killers), e outras, nem tanto (como a do policial corrupto que deseja se eleger xerife). Porém, todas têm um propósito, e de alguma forma, dialogam com a questão da fé cega, do fanatismo e do jogo de poder. 




Um ponto bastante positivo no filme é a direção de Antonio Campos, que imprime uma narrativa que, mesmo lenta, não cansa, e uma produção de quase duas horas e meia passa de maneira orgânica. As idas e vindas temporais também são outro mérito. Claro, não chega aos pés do que foi feito em 21 Gramas, por exemplo, porém, essas linhas diferentes conseguem mostrar aspectos bem interessantes da história. 

Outro dado interessante é que o filme é baseado no livro do escritor Donald Ray Pollock, que é quem faz a narração em off da produção. E, longe de ser uma narração óbvia, ela traz alguns elementos importantes para a trama, complementando o que estamos vendo em tela. 

Da mesma maneira, a trilha sonora também se destaca por ser fora do padrão, às vezes, com um ritmo alegre que parece destoar do que acabamos de presenciar, mas, aí que está a ironia e o desconforto que a história também quer passar. 

Porém, sem sombra de dúvida, o grande destaque aqui é o elenco. Em especial, Tom Holland, Bill Skarsgård e Robert Pattinson, que, não por acaso, são os atores que interpretam os personagens-chaves da trama, aqueles que representam a fé cega, a fé corrupta e hipócrita e a total falta de fé. 

É nessa tríade de conceitos, por sinal, que o filme se encora para passar a mensagem que deseja. E consegue muito bem ao final, mesmo com um ou outro deslize, ou uma ou outra cena um pouco destoante demais para o clima estabelecido como um todo. 




Incômodo ao abordar facetas escondidas do ser humano através de máscaras sociais que vão da religião ao abuso de autoridade dos ditos "homens da lei", O Diabo de Cada Dia pode até soar pesaroso demais por ter tantos personagens nefastos fazendo as piores barbaridades. 

Porém, mesmo que haja aqui uma (aparente) falta de esperança, o recorte que o filme faz é preciso ao abordar preconceito, hipocrisia e outras formas de abuso. 

Tudo em nome de Deus.
Tudo em nome da lei.
Tudo em nome da pátria. 

O que resta é o cansaço e a esperança de dias melhores. Pesado e triste. Mas, muito revelador para os dias nos quais estamos vivendo. 


Nota: 8/10


Comentários

  1. Ótima análise, Erik. Todo mundo está assustado com O Dilema das Redes, porém para mim este é bem mais assustador por escancarar e manipulação explícita usando a fé.

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    1. Pois é, Marilda. É aterrador o que o cidadão de bem é capaz de fazer. Forte abraço pra você.

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