Dica de filme ("Flee")

Dica de Filme


Título: Flee
Ano de lançamento: 2021
Direção: Jonas Poher Rasmussen



Uma história de autoconhecimento em meio às barbaridades de um conflito que resultou na ascensão do Talibã no Afeganistão

Em determinado momento de "Flee", a mãe de Armin fala a ele e aos seus irmãos quão encantador foi viajar de avião com o pai deles. Algum tempo depois, o mesmo Armin estaria dentro de um avião, numa viagem rumo ao desconhecido, cheio de traumas por causa dos conflitos que presenciou em sua terra natal (o Afeganistão) e com muitas dúvidas pessoais quanto a si. Mais especificamente: quanto à sua sexualidade. Não à toa, uma das primeiras cenas da animação mostra um pequeno Armin correndo pelas ruas de Cabul, trajando um vestido, e alegre, ao som de "Take on me", do A-ha. 

Conflitos internos e externos na vida do menino passarão a ser recorrentes. Tudo relatado no presente, com Armin já adulto, e tendo deixado um passado tenebroso para trás, especialmente, quando recorda que a sua família precisou fugir de Cabul após a tomada do poder pelos terroristas do grupo mujahidin, que dariam origem ao atual talibã. São momentos tensos, retratados em forma de flashbacks bastante pontuais, e que dão um pouco da dimensão do horror que muitos sofreram no período. 



Historicamente, a animação retrata bem o ocorrido, especialmente ao apontar que os mujahidin eram financiados pelos EUA, mas, não isentando a Rússia de responsabilidade nisso, mostrando claramente, que, naquele momento, eram afegãos contra afegãos, em meio a interesses de duas grandes potências. A forma como Armin retrata a ex-União Soviética daquele período pode incomodar os mais ferrenhos partidários comunistas, ao expor que o país estava passando por profundos problemas econômicos, além de mostrar, sem concessões, a corrupção policial que existia ali. 

Porém, é bom ressaltar que se trata de uma história verídica e pessoal de uma pessoa comum que viveu todas aquelas barbaridades, e que, portanto, cabe como registro para expor que, no final das contas, é o povo comum quem está a mercê das piores atrocidades, não importando a ideologia por trás dos mandantes do conflito. 

Tanto é assim que uma das cenas mais significativas de "Flee" acontece quando algo horrível ocorre bem próximo da inauguração de uma filial do Mc Donald's em Moscou. Sim, uma empresa capitalista em um país socialista, alienando pessoas para o que de mais grave estava ocorrendo ao seu redor (bem debaixo dos seus narizes). Simbólico, no mínimo. 

Ao mesmo tempo, "Flee" também é um pouco a busca pessoal de Armin por um lar e uma identidade. Nisso, aparecem constantemente devaneios do menino olhando para cartazes de filmes com atores musculosos, e o próprio Armin flertando com garotos na rua. Porém, sempre a realidade do conflito no Afeganistão e a vida dura em Moscou o puxa para baixo, colocando-o diante de uma realidade cruel, onde sua família faz de tudo para protegê-lo (afinal, além de refugiado, sua condição sexual o coloca em perigo constante em meio a fundamentalistas). 


A narrativa de "Flee" é outro caso à parte, pois, ela funciona muito bem, justamente por mesclar estilos. Quando Armin está no presente, relatando seu passado conturbado e nas sequências em geral de sua infância e adolescência, a tela exibe uma animação tradicional, um pouco limitada em termos de movimentos, mas, que não incomoda nem um pouco. Já nos momentos mais tensos e violentos, o filme mostra uma animação mais rebuscada, bastante borrada, em conjunto com cenas reais da época. 

Esse recurso consegue comunicar muito bem ao espectador os conflitos do protagonista e das pessoas ao seu redor, não apelando para cenas gráficas demais, mas, expondo, em alguns momentos, de maneira simbólica, o horror de um conflito como aquele. As imagens aqui têm força se serem gratuitas, e conseguem equilibrar muito bem o que Armin vê e sente diante de tudo aquilo. Em alguns momentos, lembra "Persépolis". Em outros, "Valsa com Bashir". Mas, no final, "Flee" tem identidade própria. Assim como o seu protagonista tem a dele, e aprende a lidar com isso.  

Além do recurso narrativo feito por meio de animações diferentes e imagens reais, o filme também tem outros predicados, como a ótima trilha sonora (que, de um jeito ou de outro, acompanha o personagem em sua trajetória), e os diálogos, sempre precisos e, ao mesmo tempo, escritos e inseridos com naturalidade na trama



A tradução literal de "Flee" é "fugir", e isso é bastante simbólico. Além de fugir de sua terra natal, Armin, por vezes, também precisou escapar de si, da sua personalidade, de quem é. No início do filme, ele mesmo fala da busca por uma casa, por um lar, um lugar onde pudesse ser acolhido. E esse desejo, atrelado ao ataque bárbaro de fundamentalistas em seu próprio país, é algo bem forte. Humano, intimista, e ao mesmo tempo, bastante crítico quanto ao mundo baseado em conflitos bélicos. 


 Nota: 9/10

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