Dica de filme ("O Criado")

 Dica de Filme


Título: O Criado
Ano de lançamento: 1963
Direção: 
Joseph Losey


A vulnerabilidade do ser humano e os primeiros passos da decadência

A fragilidade humana é um perigo. Ronda os mais vulneráveis, sempre à espreita, como uma ave de rapina, prestes a devorar a dignidade de quem quer que seja. A solidão é uma dessas fragilidades, e dela pode decorrer muitos problemas irremediáveis. É o caso de Tony, um homem que tem tudo à sua disposição, dinheiro, carreira promissora, e uma pessoa a quem amar. Falta-lhe, contudo, um criado que organize sua casa, e alguns aspectos de sua vida, E, esse será justamente o início de sua possível derrocada. 

Esse é o ponto de partida do filme "O Criado". Hoje (e até para a época), esse enredo pode parecer lugar comum, apontando para soluções óbvias ao longo do desenvolvimento da trama. Porém, à medida que o longa avança, e Tony se vê às voltas com uma relação nada normal com o seu criado Barret, tudo vai se complicando a ponto de não sabermos bem onde tudo aquilo irá desembocar. Mesmo que a queda seja previsível em um determinado momento da história, a questão está em como se chega a isso. E, isso o filme constroi muito bem. 




Além de abordar a questão da decadência e da perda gradual de dignidade (especialmente tendo como mote a solidão ocasionando uma série de vícios), o filme também não deixa de ter certa questão de classes envolvida na história. Afinal, por mais que Barret se mostre um criado um tanto intrusivo desde o início, tanto o seu patrão, quanto a sua companheira, vez ou outra, apelam para pequenas humilhações aqui e ali, e o que vai acontecer mais pra frente é como se fosse uma virada de posição social, ou, mais precisamente, no nivelamento entre Barret e Tony. 

Porém, não é tão simples assim. Por mais que ao final, possamos ver Barret (o tal criado) como vilão da história, em muitos momentos, que está "acima dele" não é tão melhor assim. E isso melhora muito uma história que poderia cair fácil em clichês, mas, que aborda as falhas humanas em vários níveis, e em muitas pessoas aqui. Em outras palavras: ninguém em "O Criado" é tão virtuoso quanto possa parecer, e, justamente por causa disso, Barret parece ser aquele personagem que, com o passar do tempo, vai testando os limites de Tony (e os nossos, enquanto espectadores). 

É como se a decadência fosse algo inevitável, muitas vezes, bastando uma fagulha, um estopim, para o nosso pior vir à tona. Ao mesmo tempo, Tony, em todos os seus defeitos e fragilidades, tenta escapar. Interessante que no início do filme, a casa dele se encontra completamente bagunçada, e é por isso que ele quer contratar um criado. Só que ao final dessa história trágica e intimista, a casa dele continua está tão ou mais bagunçada que no começo, como se ali representasse o seu íntimo, sempre em busca de alguém para arrumá-lo. Seja uma companheira, um amigo, ou um criado, enfim. 




Essa sensação um tanto caótica, um tanto desnorteada que permeia o filme está presente nos gestos e olhos das personagens e nas imagens captadas pela câmera do diretor. Parece até que o que está sendo mostrado ali quer nos dizer algo a mais que não estamos enxergando. Muitos personagens parecem ter o olhar perdido, e em algumas cenas, o diretor Joseph Losey filma tudo pela perspectiva de espelhos, lentes, etc. Como se fosse uma realidade distorcida, retratando pessoas que são mais (ou menos) do que aparentam.

Nesse aspecto, ressalte-se a competência do elenco, conciso e muito bem conduzido, em especial, Dirk Bogarde, que faz um Barret dissimulado e até asqueroso com perfeição. Já a direção tem alguns planos bem interessantes, flertando até mesmo com um estilo noir, e um pouco do que Hitckcock fazia. O roteiro é muito bem amarrado, só pecando por tratar o Brasil de maneira pejorativa e ignorante em muitos aspectos. Coisas da época, e que ainda hoje persistem, infelizmente. 




"O Criado" é um inquietante estudo de derrocada de personagem, onde vislumbramos como carências pessoais podem reverberar em uma profunda decadência, numa escala sem volta. Incômodo, e assim como existem muitas cenas de espelho no filme, é como se estivéssemos nos vendo ali. Afinal, qualquer um pode ser Tony em algum momento da vida. No mínimo, inquietante, portanto. 


Nota: 8,5/10


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