Dica de Filme ("O Acontecimento")

 Dica de Filme


Título: O Acontecimento
Ano de lançamento: 2022
Direção: Audrey Diwan



Quando o poder de escolha da mulher é retirado só resta sofrimento e violência

O aborto ainda é tabu nos dias atuais. Prova disso é a celeuma que a Suprema Corte dos EUA provocou ao revogar uma lei que autorizava o aborto em todo território nacional, deixando a cargo dos estados legislarem a esse respeito. Em países muito conservadores como o Brasil, até em casos onde o aborto é permitido por lei (estupro e risco de morte para a mulher), o assunto é tratado com descaso, e mesmo crianças que engravidaram em decorrência de violência sexual, encontram dificuldade em realizar ço procedimento abortivo. Em nações do Oriente Médio, então, nem se fala.

Ou seja, em quase todos os países o poder de escolha da mulher em relação ao aborto é suprimido o máximo que se pode a depender da cultura local. Por essa razão, não deixa de ser bastante atual (e angustiante) um filme como "O Acontecimento", que se passa nos anos 60, mas, parece uma história real ocorrida na semana passada. Pouco ou nada parece ter mudado pra melhor de uns anos pra cá. Ao contrário: periga termos tido uma piora, com as mulheres sendo mais assediadas a não fazerem o aborto (e repetindo: mesmo em casos como estupro). 

Nesse sentido, o enredo de "O Acontecimento" parece não ser tão extremo assim, já que temos a protagonista (a jovem Anne) engravidando, e passando perrengues para interromper a gravidez já que isso claramente iria atrapalhar seus estudos e sua vida como um todo. Porém, mesmo que a história dela não se encaixe em situações muito extremas, acaba sendo importante ver, na prática, como uma mulher é tratada quando resolve (ou precisa) fazer um aborto. 




Começa pelo tratamento dos médicos. Lembremos: na época em que se passa o filme (França, 1963), o tema era ainda mais tabu do que é hoje, e a mulher que fizesse o procedimento seria inevitavelmente presa. Por isso, não deixa de ser sintomático que todos os médicos disponíveis sejam homens, e todos eles tenham o mesmo discurso: "Aceite a maternidade. Não há nada que possa ser feito". 

Ao mesmo tempo, temos alguns vislumbres da relação de Anne com a sua família, mais precisamente, com seus pais. Ele, por exemplo, não parece ser má pessoa, porém, é retratado como um pai meio ausente. A mãe, por sua vez, é mais presente, porém, ainda com um pensamento um tanto retrógrado, mesmo que apoie a filha em seus estudos e tudo. Só que esses pontos não são expostos de cara e de maneira didática. É tudo colocado aos pouco, com uma interação aqui e outra acolá. 

Existe ainda a relação de Anne com outras garotas numa comunidade, e que estão tentando entrar na universidade que nem ela. Há até indícios de que ela tem duas melhores amigas, mas, quando a questão da gravidez vem à toa, depois de algumas tentativas da protagonista de fazer o aborto, a situação entre as supostas amigas fica mais complicada. 

Ou seja, o filme explora muito bem não somente a questão de uma gravidez indesejada e do aborto, mas também como vários setores da sociedade ao redor das mulheres tratam a situação (ou, ao menos, tratam as mulheres como sendo obrigadas a isso ou aquilo). A sensação de imersão se torna ainda mais latente pelo fato da diretora Audrey Diwan posicionar sua câmera, em muitas ocasiões, no ombro de Anne, por detrás dela, passando a sensação de que também estamos, enquanto espectadores, sendo vigiados, julgados e execrados. 




Em se tratando das tentativas de aborto por parte da personagem principal, o filme não nos poupa de algumas sequências angustiantes, mesmo que não sejam muito explícitas. Além disso, o longa tem o recurso de mostrar na tela o tempo da gravidez, semana a semana, o que deixa a situação mais tensa, pois, com o passar do tempo, mais as possibilidades de Anne vão diminuindo, e essa sensação de corrida contra tudo e todos é muito bem construída na narrativa, com espaço para alfinetas contra a cultura machista, mas, sem grandes digressões, o que seria cansativo para o filme como um todo. 

A atriz que faz Anne, Anamaria Vartolomei, entrega uma performance muito convincente, expressando revolta e medo em alguns momentos na dose certa, sem exageros. Interessante que a personagem não é retratada como uma pessoa bobinha ou inocente, mas, apenas como uma garota que que aproveitar a vida, mesmo pagando o preço no tipo de sociedade que vivia. E essa retrato honesto de uma pessoa comum é muito bem feito por Vartolomei, que, numa via crucis solitária, pretende ir até o fim com sua decisão. Muito ajuda a direção precisa de Audrey Diwan, que não desperdiça uma única cena. 



"O Acontecimento" quase um documentário de como é difícil ser mulher em uma sociedade que limita demais suas escolhas pessoais, que tem a ajuda até mesmo de outras mulheres. O filme se passa há mais de 50 anos atrás, mas, poderia ser a adaptação da história de uma garota neste exato momento em alguma parte do Brasil, dos EUA, ou de qualquer outro lugar. 

Incômodo? Forte? Provocador? Essa é a intenção. Pelo menos, enquanto perdurar esse inacreditável tabu em nossos dias atuais. 



Nota: 9/10

Comentários