DICA DE FILME ("Pinóquio")

Dica de Filme


Título: Pinóquio
Ano de lançamento: 2022
Direção:
 Guillermo Del Toro e Patrick McHale



Aquilo que o fascismo não controla 

ATENÇÃO: esse texto contém spoilers!!!

O teor político nas obras do cineasta mexicano Guillermo Del Toro já é amplamente conhecido a essa altura, seja por trabalhos mais viscerais ("A Espinha do Diabo"), mais poéticos ("O Labirinto do Fauno") ou mais convencionais ("A Forma da Água"). Nesses filmes (especialmente nos dois primeiros), Del Toro sempre se preocupou com três coisas: mostrar que os seres humanos podem ser mais monstruosos do que qualquer criatura bestial, expor o quanto o autoritarismo militarista e fascistóide só produz morte e outras desgraças, e o quanto o olhar infantil pode se contrapor à barbárie. 

Sua versão de "Pinóquio" não foge à regra. 

Estamos aqui em plena Itália de Mussolini, em um ambiente onde o fanatismo e o autoritarismo são predominantes, mas, cuja visão conservadora é contrariada pelo olhar doce e ingênuo de Pinóquio, um boneco de madeira que criou vida para substituir o filho do velho carpinteiro Gepeto, morto aos 10 anos em um bombardeio na Primeira Guerra Mundial. Só que com o passar do tempo, outros personagens vão tentar impor outras funções ao pequeno Pinóquio, incluindo a de ser um soldado do exército fascista de Mussolini, ou simplesmente uma atração circense para ganhar dinheiro.




É muito simbólico que Pinóquio se mostre em público pela primeira vez dentro de uma igreja, com as pessoas ali, devotas da sua religião, mas, obrigadas a serem devotas também da ideologia fascista. De início, ficam horrorizadas com um boneco de madeira vivo, achando que se trata de bruxaria, coisa do demônio, ou algo do tipo. O questionamento das pessoas passa a ser "onde estão as cordas que movimentam esse boneco", achando se tratar de uma marionete. 

Logo em seguida, um soldado fascista ordena a Gepeto que eduque e discipline melhor aquele boneco, pois, as suas desobediências não podem ser toleradas no atual regime político da Itália. O fato, portanto, de Pinóquio ser um boneco hiper ativo, curioso e sem amarras (ou melhor: "sem cordas") é uma clara analogia de que aquele ser é um perigo para qualquer sistema autoritário, que exige obediência irrestrita dos seus cidadãos. Nesse sentido, a animação é muito certeira e provocativa. 

Para além das analogias políticas (que são bem boladas, mas, que, algumas vezes, tornam-se óbvias demais), "Pinóquio" também é uma história com uma carga emocional muito bonita. Por sinal, essa palavra cai bem como uma das qualidades da animação: a beleza. Desde os primeiros minutos, somos colocados um pouco na rotina de Gepeto e seu filho ainda vivo para nos conectarmos com eles. Não é difícil, pois, tudo soa bastante natural e singelo, numa relação de pai e filho simples, e só.

Há alguns elementos fantásticos aqui que talvez tirem um pouco os espectadores da imersão na história, pois, a forma como são mostrados parecem se encaixar melhor no universo da história de um "O Labirinto do Fauno", e não de um "Pinóquio". Mas, ainda ainda assim, é uma adição curiosa, e injeta alguma dinâmica diferente na história que muitos conhecem somente através da animação da Disney. Essa nova versão, inclusive, melhora alguns elementos já clássicos da trama, como o circo onde Pinóquio passa a se apresentar, e a aparição da horrenda criatura marinha, que aqui não parece nem um pouco uma baleia. 




Porém, mais horrenda do que essa criatura do mar são muitos dos seres humanos na história, seja o dono do circo, seja um oficial fascista, que cria seu próprio filho pequeno para ser um soldado implacável no exército de Mussolini. As cenas com esses personagens são carregadas de uma vilania que, talvez, soe caricata de início, mas, que faz todo o sentido se olharmos ao redor da vida real em pleno 2022, cujo lema virou cegamente a tríade "Crer - Obedecer - Combater" (lema esse pintado no muro de uma casa na cidade onde Gepeto e Pinóquio moram). 

Por isso, Pinóquio é visto com bastante reticência pelos fascistas da história, já que ele não é um ser que pode ser facilmente controlado. É um boneco sem cordas, impossibilitando dele ser uma marionete. Ele não acredita por acreditar, e não obedece fácil nem mesmo as ordens de Gepeto. Não é à toa que, diante da dificuldade de domar um ser assim, a autoridade fascista decide treinar Pinóquio como um soldado, como uma arma de guerra, já que ele aparenta ser imortal. É a tentativa, portanto, da cooptação da inocência e da liberdade, trazendo assim uma das mensagens mais fortes dessa nova versão. 

Ainda assim, faltou só um pouco mais de sutileza em alguns momentos. A aparição, em si, do próprio Mussolini é divertida e debochada, fazendo o que Chaplin fez lá atrás com "O Grande Ditador", que era escrachar com o fascismo como algo ridículo e patético, de fato. Porém, no roteiro de "Pinóquio" faltou só um pouco mais de elaboração das suas simbologias contra o autoritarismo, e unir melhor o lado fantástico e sobrenatural com os "acontecimentos reais". 

No entanto, esses não são problemas que tiram os vários méritos da obra, pois, como repaginação de uma história clássica para se adaptar a uma crítica atemporal, convenhamos: "Pinóquio" se sai muitíssimo bem. Fora que os personagens, mesmo os que possuem pouco tempo em tela, são bem interessantes, uns mais cativantes, e outros mais asquerosos (porém, todos bem construídos). O stop motion é um desbunde de bonito, o que abrilhanta ainda mais essa fábula resignificada para os dias atuais como uma ode anti-autoritária. 




Ao final, "Pinóquio" é um produto muito importante do seu tempo, abordando temas complicados e um tanto sombrios, mas, conseguindo um bom equilíbrio entre fantasia e crítica social. Não é tão impactante quanto um "Labirinto do Fauno", por exemplo. Contudo, essa animação mostrou ser uma iniciativa louvável e cativante dos seus realizadores, que mostraram, mais uma vez, que o maior inimigo do autoritarismo é um pensamento livre de amarras, que não obedece por obedecer. 


Nota: 8,5/10

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