Dica de Filme ("Anatomia de uma Queda")

 Dica de Filme


Título: Anatomia de uma Queda
Ano de lançamento: 2023
Direção: Justine Triet 


A vida íntima no banco dos réus

A vida pessoal que extrapola os limites, e vem a público de maneira dolorida, é mais ou menos o tema de "Anatomia de uma Queda", ganhador mais recente da Palma de Ouro em Cannes. Podemos dizer mais: em algum momento, escolhas íntimas, muito particulares podem, um dia, ser julgadas, não só pelos seus entes queridos, mas, de forma bem mais ampla. 

No começo do filme temos uma sequência aparentemente comum, de uma entrevista a uma escritora famosa, em sua casa, quando a conversa é interrompida por sons muito altos, no que a escritora diz se tratar do seu marido, que estuda música. Claramente, há um desconforto pairando no ar, como se aquele homem quisesse ter a sua presença notada. Há desconforto e um certo ranço no ambiente. É quando, minutos depois, algo acontece, o que vai mudar bastante a vida daquela pequena família. 




"Anatomia de uma Queda" trabalha com a construção de um quebra-cabeças sobre a conturbada vida conjugal de um casal para desvendar um suposto crime. Nisso, vamos acompanhando a vida íntima, e também problemática, de Sandra (a escritora), seu marido Samuel e o filho de ambos, Daniel (este, cego desde os 4 anos devido a um acidente que supostamente ocorreu por negligência do pai). 

Quando o filme se transforma numa produção "de tribunal" é que vamos encaixando as peças do quebra-cabeças, entendendo um pouco da dinâmica daquela família. A história, que antes era íntima, passa a ser pública. E há muita frustração naquele seio familiar, muitas acusações, muita raiva mal canalizada, muitos desentendimentos mal resolvidos. As escolhas que Samuel e Sandra fazem não estão em conformidade um com o outro, não parecia haver mais uma relação, e sim, uma disputa egos feridos. 

Só que lembremos: Sandra, após o ocorrido no início da trama, está agora no banco dos réus. Simbolicamente, é como se estivesse num julgamento público pelas escolhas que fez, e pelos erros que cometeu, já que a promotoria que faz sua acusação, usa de todos os meios para desqualificar seu caráter. Nesse ponto, dois momentos são significativos, primeiro, quando o psicólogo de Samuel depõe e acusa Sandra de insensível e cruel com o marido, e quando surge uma gravação de uma briga pesada entre ambos. É quando Sandra retruca: "Esses são recortes de nossas vidas, não éramos assim o tempo todo. É reducionista. Se tivesse um psicólogo meu aqui, ele também iria taxar Samuel de monstro. Mas, ele e eu éramos monstros um com o outro mesmo?"




O filme passeia por esses mínimos detalhes da vida de Sandra e Samuel, e não temos a resposta do que de fato aconteceu naquele fatídico dia retratado no início da história, até seus minutos finais.  Importante salientar que "Anatomia de uma Queda" aborda temas delicados, e desmistifica alguns tabus, como o fato de uma pessoa com depressão poder aparentar ou não estar bem diante das outras pessoas, e por aí vai. 

Porém, o que parece ser o grande mote do longa é que as pessoas, mesmo as que mais gostamos, nos machucam, e em alguns momentos, vamos machucá-las. Só que isso tem um peso mais simbólico quando esses problemas íntimos vêem a público para julgamento de tantas outras pessoas, e você (neste caso, e especialmente, por se tratar de uma mulher) tem que justificar atitudes para se defender; claro, na superfície, estamos falando aqui de um julgamento devido a um suposto homicídio, mas, nas entrelinhas, o que parece estar sendo questionado mesmo é a vida íntima do casal, suas escolhas, suas falhas pessoais...

É, portanto, um bom estudo de relacionamentos, só pecando um pouco por alguns excessos. O filme é longo demais, e às vezes, acaba batendo numa tecla só, e faltando 15 minutos pra terminar, poderia ter encerrado ali, pois, basicamente, ele não tinha mais nada a dizer. Ainda assim, é um filme bem forte em alguns momentos, potencializado pelo ótimo elenco e a direção cuidadosa de Juliene Triet.




Aqui temos, então, um filme que em boa parte é de tribunal, porém, mais simbólico do que literal, expondo o quanto na vida íntima podemos ser cruéis (inclusive, com nós mesmos). 

Nota: 8/10


Comentários