DICA DE FILME (A Substância)
Dica de Filme
Título: A Substância
Ano de lançamento: 2024
Direção: Coralie Fargeat
O corpo feminino como cobaia da indústria da estética
É inegável que vivemos num tempo onde a imagem diz mais do que o conteúdo, e principalmente quando essa imagem está atrelada a um corpo esteticamente padronizado pela cultura vigente. É necessário que os homens sejam assim, e, especialmente, as mulheres sejam assado. Disso depende seu sucesso midiático. Elisabeth Sparkie, protagonista de A Substância, por exemplo, vive esse dilema. Apresentando um programa de aeróbica, lider de audiência há anos, ela já não serve mais para os engravatados donos do programa, e para o público em geral. Já está "velha", "ultrapassada". É quando descobre um produto experimental que promete um rejuvenescimento completo, e é quando as piores coisas acontecem.
A Substância é um filme vendido como terror, mas, na verdade, soa mais como uma sátira de horror (muito triste e melancólica em sua essência), onde, em muitos momentos, a coisa parece ser, propositalmente, uma caricatura do real. O intuito é claro: mostrar, através do exagero, o quanto a cultura atual, calcada demais no visual e na estética, alimenta comportamentos abusivos, inclusive, contra os nossos próprios corpos, num ambiente onde nos sujeitamos a injetar qualquer coisa em nosso organismo, e até a mutilar partes dele se o intuito for o de seguir um padrão culturalmente aceito, e cooptado por indústrias cujo único foco é o lucro.
Ou seja, o verdadeiro terror em A Substância não está tanto nas cenas grotescamente explícitas, mas, na deterioração íntima de uma sociendade que soa cada vez mais decadente. Em determinado momento, logo no início do filme, o chefe de Elisabeth, interpretado por Dennis Squaid, devora um prato de comida em um restaurante, e a expressão é essa mesmo: devora. A diretora do longa faz questão de mostrar em closes repulsivos a boca dele mastigando de forma bem desconfortável, como se ele não estivesse apenas se alimentando daquele prato, e sim, "devorando" Elisabeth, até que não sobre mais nada dela, sugar dela até a última gota de lucro que ainda pode oferecer.
Ao mesmo tempo, é interessante notar como a protagonista, aparentemente, não tem amigos ou parentes, vivendo isolada em seu apartamento que, não por acaso, tem uma janela que dá de frente a um enorme outdoor do programa que ela apresenta, como se aquilo ali, de alguma forma, fosse um lembrete, um recado de que o tempo dela, para os padrões sociais atuais, está terminando, algo que a oprime bastante em outra cena, que irá acontecer mais tarde, onde a estrela do cartaz agora é outra. E esse é um dos cernes da questão que o filme aborda: o quanto se é oprimida diante de constantes julgamentos e cobranças, especialmente quando se é mulher, e quando o seu trabalho depende muito da imagem.
As críticas de A Substância, pelo tom cínico, mordaz e satírico, lembram um pouco Tropas Estelares, com a exceção de que aqui a caricatura é melhor formulada, pois, a diretora Forgeat consegue imprimir um ótimo equilíbrio entre o exagerado, o farsesco, e o "sério", digamos assim. Com isso, o longa consegue dar peso à gradativa deterioração de Elisabeth, em todos os sentidos, e mostrar o quanto a cobrança exagerada a esse eterno culto a um corpo jovem e sarado cobra o seu preço. A regra para usar a "substância" é a moderação, mas, o meio não pede moderação; ao contrário: é preciso você ser cada vez mais jovem, mais atlético, mais sexy, até o limite.
De certa forma, o filme também discute as relações de poder numa indústria como a do entretenimento, e mais especificamente sobre a falta de controle e poder que temos, inclusive, dos nossos próprios corpos. O dilema de Elisabeth, portanto, é um dilema contemporâneo: até que ponto temos liberdade? Qual o limite do nosso poder de escolha, incluindo o que vamos fazer com os nossos corpos? Esses questionamentos são muito pertinentes, ainda mais porque vivemos na era de redes sociais que exploram demais a imagem, a estética, e é preciso, cada vez mais, usar filtros para esconder possíveis "falhas". É também o hiper estímulo próprio dos tempos atuais, e que a diretora de A Substância usa tão bem, com uma dinâmica de câmera frenética, cheia de movimentação e cortes imediatos.
Por sinal, a maneira de Coralie Fargeat filmar tudo aqui é outro ponto a destacar, pois, ao contrário de muitos filmes de terror/horror atuais, que usam e abusam da câmera estática para tentar criar tensão, a diretora não deixa o espectador sossegado. Estamos praticamente o tempo todo seguindo Elisabeth, correndo com ela, cansando com ela, como se fôssemos nós a julgarmos o seu corpo também, assim como a audiência do seu programa está fazendo. Para além de algo meramente estético (até para não cair em contradição, pois, a crítica aqui também é dessa ultra valorização da imagem), e que, de fato, remete a produções dos anos 70 e 80, esse estilo mais frenético é também um reflexo do íntimo de Elizabeth, que vê, a cada minuto, seu tempo se esgotar, não de vida, mas, de ser uma estrela midiática.
O filme consegue o efeito desejado graças a três elementos: a direção e as atuações de Demi Moore e Margareth Quailey. O desconforto que Moore passa em tela é latente, ainda mais porque a própria atriz sofreu com questões similares no passado, e Quailey também consegue transmitir vivacidade em sua interpretação; uma vivacidade exagerada, que só é possível "sugando" a energia vital de Elisabeth (pra quem assistir ao filme, isso fará total sentido). E, Dennis Quaid está igualmente bem em seu papel de executivo absolutamente canastrão, abusivo e misógino; não por coincidência, seu nome é Harvey.
A Substância é uma excelente sátira de horror grotesco e bizarro, que bebe bastante de Lynch e Cronenberg, com homenagens a alguns clássicos do genero, como Carrie - A Estranha, e que, por meio de situações repulsivas, consegue incomodar e questionar a ditadura da estética que tanto tem prejudicado as pessoas nesses últimos anos, especialmente, as mulheres. Por meio do exagero, ele consegue ser imensamente crítico a esse culto ao corpo, que, em última instância, o destroi, o aniquila, e o que sobra é a tentativa de voltar a um passado que já não existe mais. Algo que é brilhantemente simbolizado pela primeira e última cena do filme. Um ciclo macabro onde não se tem autonomia de nada, nem mesmo do próprio corpo.
Nota: 9/10
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