Dica de Livro

O Vôo
1995
Escritor: Horácio Verbitsky


As ditaduras militares que assolaram a América Latina entre as décadas de 60 e 80 continuam a ser um período obscuro da nossa história. Assunto tabu, muito ainda se esconde do que, de fato, aconteceu na época. Devido a isso, diversos produtos culturais são feitos para que se dê algumas pistas do que realmente ocorreu. "O Vôo" é um deles. O livro fala, especificamente, do regime ditatorial que se instalou na Argentina entre os anos de 1976 e 1983, e que deixou uma marca absurda de cerca de 30 mil mortos.

O título do livro se refere a uma das operações empregadas para o extermínio dos subversivos. Consistia em capturar pessoas acusadas de serem contra o sistema, para depois, serem fortemente sedadas, e, por fim, jogadas ao mar, estando ainda inconscientes. Horacio Verbitsky, autor do livro, centra-se numa longa entrevista que teve com o capitão de corveta da época, Adolfo Francisco Scilingo. São declarações bastante reveladoras. Seguem exemplos:


"Hoje, lamentavelmente, como as coisas estão jogadas, como se continua escondendo tudo e não se mostra a cara, acho que tanto os que morreram dessa forma, porque eram jogados, como nós, os que estávamos aí, éramos grupos de idiotas úteis (...) Penso isso hoje, quando sei que não havia necessidade de matá-los".

"Não acredito que haja aberração maior para um pai do que ter um filho desaparecido. Um filho está vivo ou está morto. Mas, desaparecido não existe. E, isso é culpa das Forças Armadas".

"Pode-se aceitar 'não falar', porque são segredos de guerra, durante um determinado período. Mas, terminada a guerra, isto já é história. E, inclusive penso que faz bem à República que se saiba não só o que se fez, como também seja obrigatória a entrega de listas de feridos e mortos (...)"

Verbitsky não se limita somente a fazer perguntas, mas interpela de maneira incisiva seu entrevistado sobre as implicações éticas e morais de tais atos. Aqui segue uma das falas feitas diretamente a Scilingo:

"O direito de saber que vai morrer não se nega a nenhum ser humano. É uma medida elementar de respeito à dignidade humana, mesmo em uma situação limite".


Além disso, o escritor consegue outras horrendas comprovações presentes em documentos e declaradas por pessoas que viveram tudo aquilo:

"A chave que o documento não revelava era precisamente o que aconteceram nesse trajeto que vai desde a prisão de uma pessoa viva, com nome e sobrenome que os militares a obrigavam a revelar, até sua transformação em um morto anônimo, cujo cadáver flutuava no limbo. Oitenta por cento dos desaparecidos tinham sido sequestrados de suas casas, na rua ou em seu lugar de trabalho, ante testemunhas. Fora uma guerra sem batalhas".

"Os poucos presos que conseguiram sair com vida da Escola de Mecânica da Armada, liberados ao comprovar-se sua desvinculação para com causas pelas quais foram capturadas, ou, em um caso, por terem fugido, permitem reconstruir aproximadamente a gama de crueldades que ali se aplicava: violentação de mulheres, introdução de camundongos vivos na vagina, mutilação de genitais com laminazinhas de barbear, vivissecção sem anestesia, amputação de membros, arrancamento de unhas de mãos e pés".

Segundo Scilingo, eram de 15 a 20 pessoas jogadas vivas ao mar todas as quartas, durante dois anos. O livro segue, então, intercalando seu depoimento com declarações de outras autoridades das Forças Armadas, o que ocasionou o julgamento de muitos envolvidos nas atrocidades citadas.

Bastante humanista e coerente com sua proposta, "O Vôo" traça um dos aspectos da ditadura militar argentina, mas que serve como parâmetro para comparar com qualquer uma ocorrida na época, inclusive a brasileira. Incita, portanto, o repúdio a toda e qualquer barbaridade ocorrida nesse período, em sua grande maioria, pelos militares.


Ironicamente, é o tenente-general Martín Balza quem melhor resumiu a questão:

"A ética sempre deverá ter primazia. Os fins não justificam os meios. Não há justificativa ética dos fins a partir da ilegitimidade dos procedimentos. A obediêrncia então deve ser valorizada em sua essência e em sua complexidade: todo militar deve dar e receber ordens. Mas, deve fazê-lo como um ser moral e individual; nunca se deve ordenar que se faça algo imoral, pois quando alguém cumpre uma ordem imoral ou a ela obedece, deixamos o terreno da virtude para entrarmos na conduta viciosa".


NOTA: 9/10

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