Dica de Filme

Filhos da Esperança
2006
Direção: Alfonso Cuarón


Uma forte catarse social misturada a uma história distópica relevante aos nossos dias atuais. Se fosse para resumir "Filhos da Esperança" em apenas uma frase, esta seria boa, mas, mesmo assim, não daria a dimensão exata da força deste filme. Com os recentes atentados terrorista assombrando o "mundo civilizado" e uma política cada vez mais vergonhosa de demonização dos imigrantes, esta produção se torna ainda mais provocativa e urgente em seus múltiplos significados, e ainda assim, resultará ao espectador médio como um ótimo cinema.

Dirigido com maestria pelo cineasta mexicano Alfonso Cuarón, o mesmo que fez "O Prisioneiro de Azkaban", melhor filme da cinessérie Harry Potter, "Filhos da Esperança" mostra um futuro bastante devastado. Porém, não por causa de alguma espécie de apocalipse, mas, devido a algo inusitado: simplesmente, as mulheres no mundo foram, gradativamente, perdendo a fertilidade, e começaram a ter abortos espontâneos. Chegou um momento em que ninguém mais nasceu, com a pessoa mais jovem do mundo tendo 18 anos de idade. Em paralelo, os governos estão reprimindo com extrema violência qualquer forma de imigração, geralmente de refugiados, que, não raro, são tratados pior do que animais, sendo transportados em ônibus como prisioneiros, ou colocados em jaulas como num zoológico.




Nesse ambiente, vamos conhecendo, aos poucos, Theo, que aparenta ser um homem comum, caminhando por uma Londres metade arruinada pelos conflitos, e a outra metade possuidora de grande riqueza, aonde as elites vivem, longe dos conflitos urbanos. É nesse momento que temos umas das melhores sequências do filme, que é quando Theo visita um de seus conhecidos para lhe pedir um favor, e este é um rico colecionador de arte. Então, ele é questionado por guarda algo que, daqui a uns 100 anos, ninguém mais poderá apreciar, já que estarão todos mortos. E, esta clara crítica ao pedantismo e à futilidade das elites é apenas uma das várias provocações que vamos vendo ao longo da produção.

Ao mesmo tempo que Theo é contratado para um serviço a pedido de sua antiga companheira, acompanhamos como o mundo se tornou vil, desde um governo totalitário, que trata imigrantes e outros excluídos como lixo, até alguns revoltosos, que, em tese, deveriam ser melhores que os seus algozes, mas, mostram que, quando têm a oportunidade, são tão canalhas contra quem lutam. Na verdade, o único no filme que pode ser considerado um autêntico ativista é Theo e mais algumas pessoas que ele vai encontrando ao longo do caminho, numa jornada em que os personagens se mostram dispostos a morrerem por aquilo em que acreditam. Só não esperem pieguismo a partir disso. O roteiro, sabiamente, dribla essa possibilidade, e não exagera na dose ao expôr ideias nobres. Em produções menos inspiradas (como em vários blockbusters hollywoodianos), com certeza, isso serviria de desculpa para um patriotismo irritante. Felizmente, "Filhos da Esperança" está num nível bem acima.




Inclusive, o roteiro, nada óbvio, baseado no romance do escritor P. D. James, não utiliza esse suturo distópico e brutal apenas como pano de fundo para a jornada inglória de Theo, e, sim, como fatos em primeiro plano. Não esquecemos, em nenhum momento, que estamos vendo o fundo do poço da sociedade, a completa distorção das ideologias, e a triste punição a quem ainda tenta fazer algo diferente. Num mundo com esse tipo de devassidão moral, Theo é quase um herói à moda antiga, que mesmo tendo perdido sua fé na humanidade após a morte de seu filho, tenta buscar um objetivo, algo que possa fazer em prol daqueles que ele tentou ajudar quando foi ativista ferrenho um dia. 

A parte técnica do filme, por sinal, consegue dar uma grandiosidade magistral à produção. Com inacreditáveis planos sequência, principalmente, na parte final, "Filhos da Esperança" nos coloca no olho do furacão (e, isso não é só uma mera força de expressão). A câmara baixa de Cuarón, unida a cenas de ação impressionantes, mais as atuações primorosas de todos os atores (inclusive, os figurantes), coloca as cenas iniciais de "O Resgate do Soldado Ryan" no chinelo, por exemplo. Nesse momento, não há trégua. O filme vai numa crescente tensão, que acaba sendo até mais atordoante do que muitos documentários por aí, mostrando a preocupação de Cuarón em não querer glamourizar a guerra, e sim mostrar o que ela tem de mais violento e desumano. Tudo atrelado a uma impressionantes atuações, em especial de Clive Owen, que faz de seu Theo um personagem atormentado, mas que, ao longo da projeção, vamos gostando dele, e de seu, não tão explícito, senso de humanismo.





"Filhos da Esperança" não é um filme fácil, pois, a priori, parece ser mais uma dessas produções sobre um futuro pós-apocalíptico, que nada acrescentam ao gênero. Mas, com coragem e habilidade, ele prova que não somente é ótimo como cinema, como também consegue ser bastante crítico num tempo em que a maioria dos cineastas se mostram com medo de colocarem o dedo na ferida. Com temas que hoje são relevantes, e que, infelizmente, ainda devem ser por um bom tempo, esta é uma produção que necessita ser conhecida, até para mostrar que a sétima arte pode ter um discurso que faça a diferença, quando tem liberdade para isso.


Nota: 9/10

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