Dica de Filme

A Garota de Fogo
2014
Direção: Carlos Vermut


Na maioria das vezes, tratar determinados assuntos com uma certa frieza, e até crueldade, pode denotar apenas indiferença, ou simplesmente um problema crônico de falta de empatia. No caso do filme "A Garota de Fogo", no entanto, o sofrimento dos personagens é uma provocação a nós, espectadores, e como vemos a dor alheia. Não à toa, uma das principais "alfinetadas" do roteiro é quando um dos protagonista solta a seguinte indireta: "Assistimos a esses programas policiais e sensacionalista porque temos o desejo mórbido de sabermos que alguém está mais desgraçado do que nós."

E, a desgraça do "outro" é o que vamos encontrar aqui, mas, não de maneira usual ou linear. Pra começar, o enredo é um bem-vindo exercício narrativo, que vai e volta com alguns personagens, aparentemente, sem ligação entre si, porém, que vão se cruzando ao longo do filme. E, detalhe: cada um tendo o seu sofrimento alimentado pelo outro, como se todos tivessem, em algum momento de suas vidas, responsabilidade pela dor que está ao seu lado. São narrativas que vão se completando, mostrando, muitas vezes, um lado do ser humano não muito agradável de se ver. Sim, o filme é duro e indigesto, mas, não apelativo ou expositivo. As mensagens e muitas das ações estão nas entrelinhas. Cabe a quem assiste ir montando o quebra-cabeças.




É um tipo de narrativa, inclusive, que lembra muito outra produção bastante triste: "21 Gramas", filme da época em que o cineasta Iñarritu ainda não tinha predileções megalomaníacas. Ambos tem as suas similaridades, no entanto, "21 Gramas" ainda tem esperança, ainda ofereço o mínimo de redenção para que o espectador saia um pouco mais aliviado. Em "A Garota de Fogo", não. Cada personagem tem as suas próprias dores, os seus próprios problemas, e, por isso, acabam infringindo dores piores aos outros, mesmo que sem consciência disso. É aí que entra um outro aspecto crítico na produção, que é o individualismo que vivemos nos dias de hoje.

As mensagens que permeiam a produção, por sinal, lembram um pouco o jeito Woody Allen de ser. Ora elas são sutis, e estão na base do puro simbolismo, ora são mais explícitas, faladas pelos personagens em contextos bem colocados na trama. Exemplo disso é a conversa entre Damián e Luís, ambos professores, e colocados ali num momento decisivo em suas vidas. E, a conversa gira em torno do desdém que a Educação sofre na atualidade, e como, em alguns casos, é mais perigoso para o professor estar na frente de um aluno do que de um bandido. É um diálogo tenso, que reforça ainda mais o que irá acontecer depois entre os dois.




Mesmo com um clima carregado, situações tristes e (não raro) brutais, e personagens perdidos, mas também muito cruéis em determinado aspecto, o roteiro não se rende a sentimentalismos rasteiros. Seria muito fácil apelar para um drama simplório, em que tivéssemos apenas piedade de personagens como Bárbara ou Alícia, as que mais sofrem de fato durante toda a história. Mas, como a trama não quer produzir mártires, muito menos "símbolos de superação", ele mostra que até no sofrimento há um pouco de maldade, indicando que o ser humano é muito mais complexo do que se imagina. Chega a ser uma proposta até audaz e incômoda, mas, que suscita uma reflexão bem melhor e mais ampla.

"A Garota de Fogo" está em desacordo com a produção atual, pois, ao contrário de impor um ritmo acelerado em sua trama, a narrativa se desenvolve de uma forma bem lenta, gradual, mas, não cansativa. Mesmo as mais de duas horas da produção não fazem as situações perderem o impacto. Algumas sequências, decerto, poderiam ter ficado mais curtas, como o encontro dos professores Damián e Luís, mas, em geral, tudo acontece no seu devido tempo, para que quem assista vá compreendendo melhor os acontecimentos (e, tirando suas próprias conclusões).




Sem dúvida, dentro do cinema recente, "A Garota de Fogo" é um filme, no mínimo, peculiar, inusitado. Afinal, mesmo que pareça, ele não é bem um drama, já que, dificilmente, você vai ficar extremamente triste com ele (apesar de se sentir incomodado em diversos momentos). Ele está mais para um estudo simbólico de quem somos, e como lidamos com o sofrimento de terceiros. Antes de chocar ou incomodar, a produção quer provocar o espectador à auto-reflexão, algo realmente não muito estimulado hoje em dia. E, no final, perceberemos que ele conseguiu falar, implicitamente, de diversos assuntos (alguns bem espinhosos, diga-se) só pra questionar: o que nos faz egoístas, impedindo que tenhamos empatia? A resposta, claro, vai ficar a cargo de cada um.


NOTA: 8,5/10

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