Dica de Disco

Sabotage
2016
Artista: Sabotage


Em janeiro de 2003, o rapper Sabotage se despedia da vida pelos meios que ele tanto criticava em suas (contundentes) letras: devido à violência urbana. Treze anos depois, é lançado este álbum póstumo, e que comprova, de uma vez por todas, o quanto Sabotage ainda tinha a oferecer para o ritmo, e que, assim como Happin' Hood e MV Bill, e, mais recentemente, Criolo, ele conseguia ir bem além do mero discurso de ódio que, muitas vezes, compõe a música dos Racionais (principal ícone do rap brazuca). A arte de Sabotage é impregnada de indignação e de revolta, sim, mas, tenta refletir a situação em que vivemos, e busca o melhor caminho possível.

Musicalmente falando, o disco é bastante rico. Vai do rock à MPB, passando pelo samba sem maiores problemas. Por sinal, essa é uma das grandes qualidades desse lançamento: não se prender a nenhum rótulo. É rap na forma, mas, universalista no conteúdo, o que deixa a audição, de uma certa maneira, "agradável" durante todas as canções, apesar dos temas, evidentemente, pesados das letras. As participações especiais são outro destaque positivo, como as de Happin Hood na ótima "Maloca é Maré", ou de Negra Li na bonita "Canão foi tão Bom", que possui um arranjo muito bem elaborado, quase "clássico". Coisa fina.


Obviamente, que uma produção competente não salvaria um disco caso o artista não tivesse talento. E, Sabotage tinha. Suas letras não são repetitivas que nem as de Marcelo D2, nem seu discurso prega um ódio ou um rancor vazios, como tantos por aí, apesar de expor, de um jeito um tanto desconcertante, uma realidade da periferia que poucos querem encarar. Em determinado momento da música "País da Fome", ele diz: "O que nos compromete é que a pilantragem cresce". Ao longo dessa letra, por sinal, Sabotage vai citando muitos dos amigos dele que "caíram" de alguma maneira, e que ele, que tentou viver em paz, só tem a lamentar perder tantos que conhece. Já, na canção "O Gatilho", o cantor desabafa o ciclo vicioso da periferia: "A fome a cada dia faz um ser pro crime, Ser pobre num é querer nascer humilde."

Além do discurso forte, que mais se assemelha a relatos do que a palavras de ordem (o que não torna o texto panfletário, felizmente), as músicas possuem elementos padrões de canções de outros estilos, como refrões que, facilmente, grudam na cabeça. Não confundam, no entanto, como algo muito pop. Refrões, sim, mas, bem trabalhados e elaborados dentro da proposta, sem descaracterizar o som. Nesse sentido, os melhores momentos, são na música de abertura, "Mosquito" e "Maloca é Maré". A produção, em si, também é muito boa, conseguindo amalgamar outros estilos distintos ao rap de forma orgânica, sem exageros, e dosando de forma aceitável as participações especiais de outros artistas, pegando a melhor característica de cada um deles, seja a verve sambista do Happin Hood, ou a beleza da voz da Negra Li.


Surpreendentemente, um dos melhores lançamentos da música brasileira do ano, "Sabotage" (o disco) cumpre sua missão de manter viva a arte do rapper, com canções que, isoladamente, possuem muita qualidade, cada uma com sua particularidade, com seu detalhe. São partes únicas, e que, unidas, formam uma trabalho coeso, que tem capacidade de agradar até quem não curte tanto assim o rap. E, ao mesmo tempo, em espírito, é um autêntico disco do estilo. Inspira revolta, indignação, e até uma certa paz. Um álbum digno, sem dúvida. Pena que o próprio Sabotage não está mais aqui para desfrutar de um lançamento tão importante para o rap este ano. Coisas de um Brasil que ainda precisa melhorar (muito).

PS: nos últimos dias, em represália à queda de um helicóptero da polícia nas proximidades da favela de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, as autoridades estão cometendo toda a sorte de barbaridades. Até agora, são vários mortos e desaparecidos, num verdadeiro show de horrores protagonizado pola polícia carioca, que, inclusive, está usando as redes sociais para fazer apologia aos famigerados grupos de extermínio, "expondo" com orgulho, vagabundo presos. A realidade, como se vê, teima em imitar artes como a de Sabotage.

"Respeito é pra quem tem!"


NOTA: 8/10



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