dica de filme ("Brazil")


Dica de Filme

Brazil
1985
Direção: Terry Gilliam


Alucinante, lisérgico, trágico, sarcástico, perturbador, brilhante. Isso é "Brazil"

As distopias são um ótimo exercício de críticas mordazes, sem que o produto precise ser, necessariamente, panfletário. A mensagem contra os desmando de uma sociedade doente até a medula está ali, nas entrelinhas, enquanto, supostamente, assistimos a um drama, comédia ou ficção científica. Tanto faz. Uma boa distopia consegue contar uma boa história, e, em paralelo, colocar o dedo em nossa cara, seja pra rir de nós, ou para lamentar. 

No caso do estupendo Brazil, talvez tenhamos aqui as duas coisas. Inevitavelmente, você irá rir em alguns momentos. Mas, também terá uma sensação de estranhamento. Irá se chocar. Irá se desesperar. E, no final, pouca ou nenhuma esperança.




Futuro. Algum momento do século 21. A tecnologia, como era de se esperar, tomou conta de tudo. Mas, não só: além de aparelhos avançados para a época, outra coisa que domina bastante o ambiente é a burocracia. A burocracia das repartições, dos serviços, tudo. Infinidade de papeis e protocolos. 

Em um ambiente assim, o mínimo erro, a menor falha, pode desencadear problemas enormes. É o que acontece quando, por falha de digitação em um documento, um homem é preso pelas autoridades acusado de terrorismo. Detalhe: o famigerado erro se dá apenas por causa da troca da primeira letra de seu nome. Apenas e tão somente isso.

É quando conhecemos o desafortunado protagonista dessa insana história, chamado Sam Lowry, o perfeito cidadão comum. É completamente alheio a questões políticas, trabalha numa repartição pública, e vive num pequeno apartamento, que, como várias residências do local, é repleto de tubos, a "alta tecnologia" daquele tempo. 

E, claro, também é refém da burocracia que assola esse estado autoritário, e, ao mesmo tempo, caótico (mas, que, juram os seus defensores, é extremamente organizado). Tanto é que o momento chave para a trama é quando o ser ar-condicionado quebra, e ele simplesmente não consegue ser atendido devido à infinidade de protocolos para que alguém venha, e faça esse tipo de manutenção.




O filme em si é repleto de significados, de simbolismos, de metáforas. Tanto é que, frequentemente, muitas pessoas precisam reassistí-lo algumas vezes para conseguir absorver as suas mensagens, e, principalmente, as suas críticas. 

E, uma dessas críticas certeiras que o cineasta Terry Gillaim consegue fazer (ainda nos idos da década de 80) é mostrar que, mesmo com tanta tecnologia ao nosso redor, parece que isso faz com que percamos a capacidade de nos comunicarmos com sinceridade e fluidez. Não à toa, os diálogos soam duros, milimetricamente recitados, como se tivessem sido escritos em uma repartição pública. 

Ou seja, a burocracia do estado se metamorfizando nas relações pessoais, sejam elas de mãe com filho, amigo com amigo, etc.

Sem contar a baita crítica que o filme faz à futilidade de uma sociedade mais preocupada com a estética do que com certos valores. Numa determinada cena num restaurante, por exemplo, algumas senhoras tagarelam frivolidades, quando acontece um atentado terrorista, com pessoas mortas e tudo. 

O que acontece em seguida é bizarro, surreal: as senhoras continuam conversando tranquilamente, e o garçom do local coloca um tapume para cobrir a cena do atentado. Facilmente uma metáfora que dialoga bastante com a nossa alienação atual, onde tragédias acontecem a olhos vistos, mas, preferimos a futilidade das coisas. Pesado. Poderoso. Constrangedor. Atualíssimo.




A direção de Gilliam é muito inventiva, colocando a câmera do lugar certo para nos dar a sensação exata de desconforto e opressão que o enredo quer passar. Enredo esse que é muito bem construído, apesar de ser formado por muitas esquetes, e ser quase "episódico". 

Os atores estão maravilhosamente à vontade em seus papeis, em especial, Jonathan Price, que faz um Sam Lowry cada vez mais atordoado diante de um cenário onde o básico das relações humanas está cada vez mais deteriorado. Na trilha sonora, destaque para a presença de "Aquarela do Brasil" (motivo pelo qual o filme tem esse título), e que permeia a vida do personagem em vários momentos.

Além de tudo isso, Brazil ainda consegue, de maneira primorosa, trabalhar o simbolismo através dos sonhos do protagonista, que, literalmente, tem devaneios de uma utopia onde ele é um herói alado, que salva uma moça em perigo, por quem ele acaba se apaixonando. 

É literalmente a utopia dentro da distopia, onde a história nos provoca o tempo todo: qual é o preço a se pagar por essa burocracia toda, que nos coloca em escritórios cheios de papeis, e nos tira a empatia pelos outros e a vontade de buscarmos os nossos sonhos? 

O desfecho do filme, extremamente melancólico, mostra pra onde essa sociedade está se encaminhando, de forma bem dura, quase cruel. Uma reflexão que ainda hoje tem relevância, mostrando que Brazil é, acima de tudo, atemporal. Necessário, até.


Nota: 10/10


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