dica de livro ("As Coisas que Perdemos no Fogo")

Dica de Livro

As Coisas que Perdemos no Fogo
2017
Autora: Mariana Enriquez 


Escritora usa o terror para abordar, nas entrelinhas, temas como ditadura militar, violência urbana e outros assuntos realmente assustadores da vida real

Fazer histórias terror não é algo relativamente fácil, ainda mais nos dias de hoje, onde parece que praticamente tudo já foi feito em se tratando desse gênero, e nada mais consegue assustar as pessoas. Mas, eis que surgem, de vez em quando, artistas com um toque genial, que conseguem pegar algo clichê, misturá-lo com fatos do cotidiano, e fazer com que medos reais se tornem tão ou mais aterrorizantes do que o pior dos monstros. 

A escritora Mariana Enriquez é uma dessas artistas, e consegue com este As Coisas que Perdemos no Fogo, algo que parecia distante nos tempos atuais: faz com que sintamos um pavor enorme com histórias de terror, algo que vai do incômodo gerado por um ambiente estranho, ao choque por presenciar algo verdadeiramente macabro.


Mas, o que tem de tão especial assim nas 200 páginas dessa coletânea de 12 contos?

Simples: Enriquez, ao mesmo tempo que não inventa a roda, valendo-se das melhores formas possíveis de se fazer uma narrativa de horror, não tem nenhum receio de introduzir temas políticos e sociais em suas tramas, que sempre revelam bem mais se você descobrir o que ela quis dizer nos meandros de cada um dos seus contos. "A cidade não tinha grandes assassinos, com exceção dos grandes ditadores, não incluídos no passeio por correção política", diz uma das passagens do conto "Pablito clavó un clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo". 

E, o melhor é que toda essa atmosfera é embalada por uma escrita envolvente, com uma dinâmica muito particular. Não existem palavras ou parágrafos sobrando. Cada trecho de cada um dos textos diz o que precisa ser dito, com uma síntese incrível, transportando o leitor para toda a espécie de lugar, e o deixando imerso naquelas histórias completamente sinistras.

Os temas centrais, contudo, acabam se desdobrando em outros ainda mais profundos. Em "O Menino Sujo", por exemplo, temos na superfície o abandono dos excluídos e a violência do tráfico, tudo aliado ao misticismo local. Mas, também podemos encontrar outra possível leitura para aquela história: a da falta de empatia da classe média, que se vê obrigada a dar migalhas aos mais necessitados, exigindo deles sempre algo em troca. 

Por sinal, esse sub-tema de pessoas tentando remediar erros do passado, ajudando alguém no presente, como uma forma de "dívida social", mas, não entendo os meandros da verdadeira miséria, da verdadeira exclusão, permeia alguns outros contos do livro, como "Sob a Água Negra", que, por sinal, possui uma nítida influência de Lovecraft.


Outro ponto fundamental que encontramos nos textos de Enriquez é que todas as protagonistas são mulheres, com exceção do conto "Pablito clavó un clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo". Detalhe: nessas histórias, aos homens é relegado o mero papel de coadjuvantes, sem grande importância para a trama. Quando mais, personagens que só servem para mostrar alguma espécie de inutilidade ou ignorância. 

A escolha foi proposital, pois mostrar histórias sinistras sob o ponto de vista das mulheres faz todo sentido quando chegamos na catarse que é o último conto, "As Coisas que Perdemos no Fogo", de um simbolismo feminista fortíssimo, e imerso em uma visceralidade tão brutal, que, ao acabarmos o livro, temos a nítida impressão que a vida real é mais assustadora do que qualquer conto de terror fantástico.

Sim, estamos diante de uma literatura feminista, engajada no melhor sentido, que não se furta a impactar o leitor, mas, com propósito além do horror em si. O terror gráfico aqui não é por acaso, não é mera apelação de quem não sabe onde quer chegar com as suas histórias. As alegorias aqui são muitas, e os temas, variados, indo de questões complexas como culpa, passando pela opressão (em especial, do patriarcado), e chegando a assuntos como o feminicídio. 

"Tudo era diferente desde que as fogueiras haviam começado. Poucas semanas antes, as primeiras sobreviventes tinham começado a se mostrar. A pegar ônibus. A comprar no supermercado. A pegar táxis e metrô, a abrir contas de banco e tomar um café nas calçadas dos bares, com as caras horríveis iluminadas pelo sol da tarde, com os dedos, às vezes sem falanges, segurando a xícara, Será que lhes dariam trabalho? Quando chegaria o mundo ideal de homens e monstras?", provoca um dos trechos do último conto, o que dá título ao livro.


As Coisas que Perdemos no Fogo é uma de uma leitura poderosíssima. Não se esgota em um nicho ou um tema, apenas. Mas, podemos dizer que existe algo em comum, uma linha-mestra, que une todas as histórias: a eterna luta das pessoas para não sucumbirem em um mundo tão perverso e brutal quanto aqueles presentes nas piores histórias de terror. 

Afinal, num mundo repleto de desigualdade social, ditadores e preconceitos, criaturas como monstros, espíritos e demônios são meros figurantes de luxo.


NOTA: 8,5/10


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