DICA DE FILME ("Nascidas em Chamas")

Dica de Filme

Nascidas em Chamas
1983
Direção: Lizzie Borden


O segundo filme de Lizzie Borden mistura ficção e documentário em uma ácida e contundente crítica ao machismo e a outras formas de opressão

Sejamos honestos: ainda vivemos em uma sociedade machista? Essa pergunta, longe de ser mera provocação ou retórica vazia, denota como podemos estar enganados a respeito de um suposto tempo onde não existe mais esse tipo de problema. No entanto, basta um pouco mais de sensibilidade para constatar: sim, ainda vivemos em uma sociedade (muito) machista. Noticiários e estatísticas estão aí pra comprovar isso para os mais "desinformados". Já, a arte, como sempre, não se faz de rogada e pode servir como um baita exercício de reflexão a respeito da realidade. 

O que nos leva ao poderoso filme Nascidas em Chamas.




Aqui, acompanhamos o que parece ser um futuro distópico. A (boa) provocação já começa daí, pois, na trama do filme, os EUA passaram por graves conflitos até que conseguiram implantar o socialismo no país. Isso, aparentemente, daria direitos e liberdades iguais a todos. 

Na teoria. 

Na prática, o abismo de classes sociais se alargou mais ainda, e o machismo, em especial, continuou a imperar do mesmo jeito que antes. Mulheres, então, começam a perder seus empregos (em particular, as mulheres negras), e aquelas que ousam de rebelar contra o Estado são perseguidas de uma forma ou de outra. Autoritarismo puro. 

Quem lê essa pequena sinopse (e que nem chega perto do que o filme consegue mostrar e representar de fato), talvez pense que a produção seja excessivamente panfletária, sem história, sem ritmo narrativo, e todas essas coisas que os cinéfilos cobram (e não sem razão). Mas, quanto a "Nascidas em Chamas", não há o que questionar. A premissa, em si, é muito boa, a a narrativa é muito bem amarrada, com tudo acontecendo na hora certa, no momento certo, sem pressa. 

É bem, interessante, por exemplo, o recurso narrativo de passar de uma cena para outra usando a música. As imagens continuam lá, "contando uma história", mas, não ouvimos os personagens, com músicas muito bem escolhidas intercalando tudo (destaque para a cena com "Voodoo Child", de Jimi Hendrix).




Mas, claro, a despeito disso tudo, Nascidas em Chamas tem no texto a sua maior força. Os questionamentos das personagens são tão pungentes, tão cheios de indignação, que se tais palavras ainda ecoam nos dias de hoje, é porque, em termos de opressão, pouco mudou. 

Da guerrilheira que decide peitar o Estado (e está certa por isso), até uma locutora de uma rádio underground, que questiona o movimento de mulheres contra o governo, que fala muito e faz pouco (e que também está certa em seu questionamento), nenhuma frase, e nenhum diálogo são desperdiçados, usados em vão, jogados ao vento. Todos possuem um propósito nítido: o da reflexão. Afinal, até quem propõe ajudar, às vezes, acaba atrapalhando.

Outro fator que ajuda muito ao filme é ele ser rodado como se fosse um documentário. As imagens saturadas, de câmera na mão, bem amadoras, acabam dando um tom de veracidade muito grande à produção, como se o que estivéssemos vendo ali estivesse realmente acontecendo bem diante de nossos olhos. 

Nesse sentido, é muito significativa a cena em que dois abusadores são atacados por mulheres em bicicletas, e outra onde uma das personagens viaja para um país africano com a intenção de se juntar à guerrilha de lá. São sequências que parecem improvisadas, mas bem verossímeis, o que abrilhanta ainda mais um filme que tem muito a dizer para os dias atuais. Trabalho exemplar da diretora Lizzie Borden.





O maior legado de Nascidas em Chamas continua sendo a sua atemporalidade. Infelizmente. Os absurdos atuais cometidos contra as mulheres, de fato, parecem algo vindo da dicção, de uma distopia longínqua, onde os gêneros ainda determinam se alguém vai ter ou não um bom emprego, se vai se sentir ou não seguro nas ruas, ou até mesmo se vai ter o direito de viver ou não. 

Fazendo também uma baita crítica aos sistemas políticos (e, em especial, aos movimentos de esquerda que dizem lutar por igualdade), o filme mostra que se trata de uma luta difícil, quase inglória, onde os inimigos estão até mesmo do nosso lado. Porém (e não darei spoilers aqui), a produção não se encerra de maneira pessimista. 

Apenas lembra que precisamos, muitas vezes, atingir o ponto certo das desigualdades que tanto queremos combater.

Fortíssimo.

NOTA: 9/10


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