DICA DE FILME ("O FAROL")

Dica de Filme

O Farol
2019
Direção: Robert Eggers


Diretor do bom A Bruxa faz do seu segundo filme um dos terrores psicológicos mais impactantes dos últimos anos 


Esqueça termos bobos e genéricos como "pós-terror". No geral, não servem pra muita coisa, a não ser gerar debates rasos sobre o que é e o que não é terror, e se filmes antigos também não se enquadrariam nessa categoria. Por que não pensar que são apenas produções de terror psicológico, e pronto, assim como foi O Bebê de Rosemary, mais de 50 anos atrás?

Bem, independente de rótulos, certo mesmo é que uma nova geração de ótimos filmes do gênero tem despontado em anos recentes. Claro, nem sempre o resultado é positivo, e muitos filmes acabam sendo mais pretensiosos do que perturbadores (caso de Midsommar, uma decepção das grandes). Porém, vez ou outra, aparecem aquelas produções (BEM) acima da média, e que chegam como um baque na mente do espectador.


O Farol, que perigava ser só mais um exercício autoindulgente do que bom exercício cinematográfico, supera (E MUITO) expectativas que se possa ter a respeito dele.





Claro, estamos falando do segundo trabalho do cineasta Robert Eggers, que surpreendeu muita gente com A Bruxa, e que mesmo não chegando aos pés deste aqui, é um filme interessante dentro da sua proposta, especialmente no que se refere à religiosidade e papel da mulher numa sociedade opressora. Só que O Farol vai além de questões específicas, amplia o horizonte de qualquer interpretação que se posa ter, e constrói algo, ao mesmo tempo, intimista e universal.

Como assim?

Bem, pra início de conversa, digamos que o filme trata, só na superfície, da relação conturbada entre duas pessoas, aparentemente, diferentes, tendo que conviver em um farol no meio do nada, onde a única distração daquele lugar é fazer a manutenção do local. Eventualmente, beber. E, mais eventualmente ainda tentar conversar.

É um ambiente inóspito, insalubre e opressor. A escolha de Eggers em filmar com câmeras antigas, em som mono, totalmente com imagens em preto e branco, e com formato da tela quase quadrado, não é à toa. São artifícios que potencializam a angústia do espectador, que sente (mesmo que de relance) a mesma angústia e falta de perspectiva daqueles personagens.

Personagens, inclusive, aparentemente simplórios, broncos, rudes nos modos. Só que aquela convivência vai resultando em uma série de coisas. Confissões feitas, troca de farpas, relações de poder... E, troca de afetos. Sim, porque parece que aqueles dois homens, isolados ali, ora se detestam, ora vêm um no outro um amigo (ou até algo mais).

A presença de bebidas alcoólicas também é providencial para a trama, já que em determinado momento um deles solta: "Você só é bom e gentil quando está bêbado". A bebida igualmente potencializa os devaneios de ambos, que, junto com as imagens oníricas, estranhas e bizarros que vemos, questionamos são não passam de fantasias, ou se aquele farol é realmente habitado por "forças estranhas".




Só que não espere um terror de fácil digestão. O horror aqui é, muitas vezes, sugestionado, e mesmo quando, já no ato final, ele é explicitado de diversas formas, ainda assim não é algo gratuito. Isso porque a trama, mesmo simples (a princípio), é muito bem construída, com elementos que aparecem ou são ditos num primeiro momento, e retornam ao filme algum tempo depois.

Mas, afinal, de que se trata O Farol?

Depende de quanto cada espectador está disposto a imergir naquele universo. De maneira subjetiva, poderíamos dizer que se trata de um estudo da decadência humana diante da exposição de seus demônios internos. Pessoas confrontadas consigo, e que que não suportar, sequer, o outro.

Também pode ser interpretado como a busca das pessoas por "algo a mais", pelo desejo de serem "algo mais", e quando não dá mais pra ser, tentam buscar algo mais metafísico. O conhecimento do mundo, ou simplesmente uma fugaz alegria. Alegria, essa, que esses personagens buscam de algum modo. Seja na carreira profissional, seja na presença um do outro, seja no mistério que ronda o farol.

Some-se a isso referências a certos personagens mitológicos, que são bem explorados nas metáforas que a trama pontua, mas que, ao mesmo tempo, geram o único defeito deste filme: a sua cena final. Ela é expositiva em demasia a respeito das referências que, até então, eram mais implícitas. Plasticamente, ficou uma cena muito bonita, é verdade. Mas, expositiva.




Sim, ok, o filme é imersivo, tem uma atmosfera claustrofóbica (ao mesmo tempo que fascinante), e a trama consegue abarcar múltiplas interpretações por meio de suas metáforas, levando a questionamentos e reflexões a respeito da condição humana como um todo.

Mas... e as atuações?

Nesse sentido, o que temos aqui são algumas das melhores interpretações vistas em 2019. Incrível a entrega orgânica de Willem Dafoe e Robert Pattinson. O primeiro convence de maneira estupenda que se trata de um velho lobo do mar do século 19, sem nunca cair numa caricatura mal-feita. Uma interpretação firme de um veterano que sabe muito bem equilibrar seus próprios maneirismos.

Já o segundo sepulta de vez sua pífia participação na série Crepúsculo, e mostra que se trata de um dos melhores de sua geração. O nível de entrega é impressionante, com o ator intercalando sentimentos de alegria, tristeza e raiva na mediada (às vezes, numa única cena!). Certo dizer, inclusive, que sem essa dupla de atores, muitas das intenções por detrás do filme teriam se perdido.

Num ano em que tivemos produções cinematográficas brilhantes em diversas áreas (Coringa nos quadrinhos, Parasita na crítica social e O Irlandês nos épicos de gângster), só ficou faltando mesmo na seara do terror. Bem, "faltava", pois O Farol chegou para suprir essa lacuna.

Bastante metafórico, e sujeito a inúmeras interpretações (todas interessantíssimas), o segundo filme de Robert Eggers é uma viagem sensorial por um mundo de fantasia e loucura (muitas vezes, a única saída diante de uma realidade dura, opressora e sem esperança).

O grande filme de terror de 2019.


NOTA: 9,5/10

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