DICA DE FILME ("Arizona Dream")

Dica de Filme

Arizona Dream
1992
Direção: Emir Kusturica


No vagão da morte, estamos todos vivos

Peculiar. Este foi o adjetivo mais apropriado para designar este grande filme chamado Arizona DreamAlém de belo, poético, engraçado, triste, trágico. E, Único. Este é tipo de longa que mostra que o cinema (e a arte como um todo) pode vagar tranquilamente pelo campo do simbólico, sem precisar da literalidade. Muito menos, pelo didatismo. 

Transita muito bem entre estilos de narrativa, sendo, com isso, um filme bem diferenciado, lembrando outros que também usam quase que exclusivamente do simbolismo para compôr suas mensagens, como Holy MotorsTiderland. Ou seja, é um cinema que busca, na excentricidade de suas cenas, um mote para falar do que é profundamente humano. 





O filme já começa com uma sequência (no mínimo, inusitada) de uma família de esquimós vivendo no Alasca. Essas cenas denotam bem a mente do protagonista de Arizona Dream, o jovem Axel Blackmer, um funcionário público que trabalha no ramo de pesca em Nova York, e que tem uma relação bem interessante com os peixes e o "modo deles de pensar a vida", além de sonhar viver no Alasca, como os esquimós. 

Esse é apenas o primeiro de muitos personagens fascinantes que o filme vai nos oferecer.

Em seguida, conhecemos Paul Leger, primo de Axel, que o leva (a contragosto e no artifício) para o casamento do tio, Leo Sweetie, no estado do Arizona. De um lado, temos Paul, um aficionado por cinema (o que gera algumas homenagens incríveis a grandes filmes, como Touro Indomável e O Poderoso Chefão), e do outro, Leo, um típico "tiozão", dono de uma concessionária de carros, que sonha deixar o negócio da família para os dois sobrinhos. 

Somente esses conflitos iniciais já geram tensões e reflexões bem pontuais na trama, especialmente na questão de discutir a efemeridade da nossa vida, e como isto afeta os nossos sonhos, e os de quem nos cerca. O filme consegue dosar bem a ironia e a inocência para criticar o mal-fadado "sonho americano", tendo como microcosmo a cidade do Arizona. 

Pouco depois, entram em cena outras duas personagens fantásticas e que irão fazer uma grande reviravolta na vida de Axel (e na narrativa do filme, como um todo): Elaine Stalker e a sua enteada Grace. Ambas nutrem tipos distintos de personalidade e tristeza: enquanto uma esconde um certo medo da vida e do destino através do consumismo e do desejo de voar (literalmente), a outra comete excentricidades e pensa constantemente em suicídio. 

E é com a entrada delas na história que o filme ganha outra dinâmica, e dá um salto narrativo. 






É na relação desses cinco personagens (aparentemente tão díspares entre si, mas, tão cheios de desejos e angústias) que Arizona Dream encontra seus pontos de convergência para dialogar com uma sociedade atual que abdica da sua própria essência. Mais do que um estudo de personagens, o filme é um estudo de sentimentos em vários níveis. Tudo isso embalado por cenas bastante poéticas e simbólicas, o que só faz ressaltar o que se quer dizer aqui. 

As reflexões em off que Axel tem sobre todos à sua volta (e sobre a sociedade como um todo) não são meras frases de efeito, e sim, inquietações genuínas de alguém muito jovem, e que já tem uma compreensão muito grande das coisas. Contudo, não se trata de um protagonista virtuoso. Axel também tem seus defeitos, seus arroubos de raiva. Já, o seu primo Paul, que de início, pode se mostrar uma pessoa desprezível, aos poucos, vira um dos personagens mais engraçados e cativantes da trama. 

Nada aqui é preto no branco. 

Sem contar ainda o fato de que Arizona Dream também se comporta como uma comédia quando se permite (e das boas). Os momentos em que Paul imita cenas de seus filmes favoritos (às vezes, nem tão "favoritos" assim) são hilárias, e dão uma leveza bem lúdica à trama. A presença do tio de Axel, o Leo, também rende momentos igualmente divertidos, ao mesmo tempo em que rende uma cenas mais fortes do longa. 

Porém, o grande foco aqui é o drama. Muitos classificaram o filme, à época de seu lançamento, como uma tragicomédia. É uma boa definição, apesar de que, ainda assim, não contempla a maior parte das coisas que o filme passa de maneira tão interessante, diferente e inusitada. Mais do que um drama de personagens, de costumes ou de lugares, aqui temos um drama de pessoas comuns, debatendo-se com a vida e com as suas vicissitudes. 





Sim, este filme tem muito a dizer (e diz) muito graças ao diretor de origem sérvia Emir Kusturica, que já havia feito alguns trabalhos que deram o que falar no meio cinematográfico (Papai fez uma Viagem de Serviço a Golden Palm e Gypsy Time - este último, bom ressaltar, rendeu a ele a Palma de Ouro em Cannes como Melhor Diretor). 

A convite de ninguém menos que Milos Forman, Kusturica viajou para Nova York para dar aulas de cinema na Universidade de Columbia. Porém, com o passar do tempo, ele ficou desiludido quando confrontou a visão que tinha dos EUA (muito graças a filmes hollywoodianos) com a realidade. Foi por meio de uma sugestão de um aluno que ele começou a elaborar um novo roteiro, e é aí que nasce Arizona Dream

É justamente essa pessoalidade no roteiro e na direção que tornam o filme tão atraente (mas, também tão sagaz). Sem se preocupar com convencionalismos, Kusturica conta sua história da maneira que quiser, não se importando com questão lógicas demais (e que, talvez, atrapalhassem o que ele quer expôr aqui). Brilhante trabalho nesse sentido. 

Obviamente que o elenco ajudou muito nesse processo, com um Johnny Depp mais impulsivamente jovem e livre de escândalos, uma Faye Dunaway entregue à loucura, uma Lili Taylor contida e consciente das agruras da vida, um Vincent Gallo cativante em sua obsessão por cinema e um Jerry Lewis ainda engraçado e com presença marcante. Sem contar ainda a trilha sonora, pontual nos momentos certos, indo de música balcânica até Iggy Pop. 

Arizona Dream, podemos dizer, é um filme de sonhos não-realizados e de pessoas sem rumo. A falsidade do sonho americano transborda em muitos momentos, onde, muito do que resta, é a morte. Porém, pelas mãos de Kusturica, é uma morte repleta de metáforas, simbolismos e também de muita beleza. Talvez por ser o derradeiro momento das pessoas, o diretor pinta esses instantes de forma tão inusitada (ao mesmo tempo que bastante respeitosa). 

Filme poderoso. Às vezes, amargo. Mas, muito bonito. Como é a vida (ou, em alguns casos, deveria ser). 


NOTA: 10/10


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