Dica de filme ("O Baile das Loucas")

 Dica de Filme


Título: O Baile das Loucas
Ano de lançamento: 2021
Direção: 
Mélanie Laurent



O horror de um sistema patriarcal como causa da loucura feminina

O horror pode se manifestar de diversas formas. Pode ser uma representação simbólica de um medo comum, metamorfoseada em um monstro tenebroso, ou pode ser uma política de estado que censura e persegue. Não raro o horror também se manifesta em relações de poder, ou em sistemas de opressão a certos grupos, e sob as mais diversas desculpas. 

Com o patriarcado é mais ou menos isso. 

Pode ser em nome de um valor moral, ou mesmo de uma suposta ciência a ser estudada. Qualquer coisa serve de pretexto para que homens se aproveitem de suas relações de poder para transformar mulheres em cobaias, objetos, ou qualquer coisa que seja menos do que humano. 



Em "O Baile das Loucas", baseado em um romance relativamente recente, da escritora  Victoria Mas, temos aqui uma personagem, Eugénie, que começa a se interessar pela doutrina espírita, lê a principal obra de Alan Kardec, e por dizer que está começando a ver espíritos e a se comunicar com eles, é internada em um hospício pelo pai. 

Porém, mesmo que a situação por si já soe absurda (ainda mais nos dias atuais), a situação se agrava pois claramente basicamente todos os homens ao redor de Eugénie usam do patriarcado para impor algo em nome de poder, seja o pai dela, que resolve se "livrar" da filha problema da maneira mais simples possível, seja dos médicos e cientistas que trabalham no hospício. 

São diversos tratamentos feitos contra a vontade das pacientes (muitos deles humilhantes e dolorosos), e em alguns casos deixando sequelas gravíssimas, tanto psicológica, quanto fisicamente. E tudo em nome da ciência, e a busca da cura para sintomas dos mais diversos problemas mentais diversos. 

Porém, o filme sempre faz questão de mostrar que a questão ali é a busca de status, e que aquelas pacientes não passam de meros brinquedos nas mãos dos homens do poder em prol do sucesso de certos avanços científicos. 



Ao mesmo tempo, a história ganha mais complexidade ainda quando uma das enfermeiras, Jeanne, mostra-se tão sádica e indiferente às pacientes quantos os algozes masculinos. Isso mostra que até quando é conveniente, pessoas de grupos oprimidos não perdem a chance de serem opressoras, contanto que isso lhes traga alguma fagulha de poder. 

O tema do espiritismo no enredo é bem abordado, mas, não necessariamente aprofundado. Afinal, o que mais está em jogo aqui é mostrar como certos sistemas se aproveitam da fragilidade de alguns grupos, e isso, propositalmente, pode levar essas pessoas à loucura completa. Nesse sentido, algumas das cenas do filme são bastante pesadas e dolorosas de ver, em especial, as da personagem Louise, talvez a que mais sofra com as experimentos e o abuso de poder dos médicos do local. 

Ao mesmo tempo, nada é gratuito ou sádico a ponto de ser quase uma "pornografia do sofrimento". A diretora (e que também atua aqui) Mélanie Laurent sabe muito bem construir as cenas para gerar revolta suficiente no espectador, sem cair na exploração barata que esse tipo de história poderia gerar. 

As atuações, por sinal, estão muito boas e convincentes, desde Lou de Laâge, que faz a protagonista, até as atrizes que fazem as pacientes do sanatório, com destaque para a intensa interpretação de Lomane de Dietrich, e a forma odiosa como Emmanuelle Bercot entrega a sua Jeanne (tão vilanesca como os homens que representam o patriarcado ali). 



No final, "O Baile das Loucas" usa como pano de fundo a questão do espiritismo para abordar como as mulheres são tratadas em um sistema que as relega a dois únicas papeis: ou serem as garotas obedientes e comportadas, ou as loucas que precisam de tratamento. Enquanto metáfora, o filme extrapola muito bem essa crítica a partir do momento em que as mulheres aqui são desumanizadas, e rebaixadas à condição de animais de laboratório. 

Que um filme lançado em 2021 incomode tanto, mesmo que a sua história se passe há mais de 100 anos, é um incômodo do qual muitos deveriam parar para refletir: se deixarmos, situações assim talvez voltem a ser comuns nos dias de hoje. Afinal, mulheres e tantos outros grupos continuam a ser desumanizados e taxados como objetos (muitas vezes, descartáveis). 

Um baita filme para uma época de necessária vigilância. 


Nota: 8,5/10


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