DICA DE SÉRIE ("Bojack Horseman" - 1ª Temporada)

 Dica de Série


Título: Bojack Horseman - 1ª Temporada
Ano de lançamento: 2014
Criador:
 
Raphael Bob-Waksberg



A autopreservação pelo cinismo, ou "torna-te quem tu és"

Um dado interessante é que muitas séries recentes, sejam pra TVs abertas ou streaming, estão focando bastante numa análise mais intimista e individualista do ser humano. A perfeição, mesmo, é colocada de lado, e é mostrado como as pessoas, até aquelas que se consideram "boas", podem cometer atos dos mais vis e cruéis. É nesse aspecto que "Bojack Horseman" se enquadra, apelando para animação, para o antropomorfismo e para a comédia, a fim de apresentar uma ácida crítica social, com generosas pitadas de cinismo e melancolia. 

O protagonista, Bojack, nessa primeira temporada de 12 episódios, é um perfeito babaca completo. Conspira contra os próprios amigos de forma egoísta e narcisista. Mas, ainda assim, consegue ser um personagem muito carismático e interessante. Por quê? Bem, talvez porque ele, de uma forma abstrata e bem humorada, consiga expor um pouco do que cada pessoa é. Ninguém consegue ser bom o tempo todo, e ninguém consegue ser mau o tempo todo. Somos complexos, temos problemáticas. 

Provavelmente, estejam nessas imperfeições tão naturais (quanto humanas) o charme e o carisma da série.




Só que esse nível de "imperfeição" não recai somente no próprio Bojack. Todos os outros personagens que estão ao seu redor também cometem erros, e parecem sempre estar em busca de algo, e quando conseguem o objetivo, não deixa de demonstrarem certa frustração. É como se todos ali precisassem sempre provar algo. Todd que provar que pode fazer sucesso no showbizz, Princesa Carolyn que provar que pode ser uma empresária implacável, prática e casca grossa, o sr. Peanutbutter quer provar que é uma estrela perfeita, Diane quer provar aos seus familiares babacas que ela é melhor do que eles. 

E, Bojack, em algum momento vai tentar provar que é bom (questionamento que ele faz no penúltimo e mais forte episódio dessa temporada). 

Essa eterna busca, que pode culminar em frustração, é o que move muitos personagens aqui. Todos estão sempre "armados", com medo da exposição. Não é à toa que uma das tramas envolve justamente a escrita de um livro de memórias de Bojack por Diane, a sua "escritora fantasma". Não são raros os momentos em que ele floreia o seu passado, escondendo o que de fato aconteceu para deixar o livro mais "palatável", construindo uma imagem mais perfeito perante o público. 

A verdade, quando surge, são nos momentos mais vulneráveis, ou então quando o próprio Bojack explode e diz coisas que simplesmente muitos se recusam a contestar, como no episódio envolvendo uma treta com um oficial da marinha que esteve no conflito do Afeganistão. Segundo o protagonista ali não tinha heróis, só pessoas idiotas portando armas. Ou seja, uma verdade dura, de fato, envolvendo os outros, mas, nunca a si. "Torna-te quem tu és"!




Apesar de todos esses pontos, um adendo: nessa primeira temporada, a série não é cabeçuda e triste o tempo todo. Ao contrário: tem momentos hilários aqui. Alguns um tanto pesados, que esfregam certos questionamentos na cara do politicamente correto, mas, que estão muito bem inseridos na trama, construídos para enriquecer o universo de "Bojack Horseman", e em alguns casos, adicionar ainda mais camadas aos personagens (como o episódio do oficial da marinha). 

Ou seja, pelo menos, nesses primeiros episódios da obra completa de 6 temporadas, nada soa gratuito ou forçado (mesmo estando diante de uma animação com animais antropomorfizados, onde o absurdo e o exagero podem facilmente surgir sem aviso prévio). Mas, incrivelmente, por mais nonsense que possa parecer tudo aqui é crível, e Bojack, Princesa Corolyn e o sr. Peanutbutter, muitas vezes, "são" mais humanos do que os personagens humanos do seriado. 

Inclusive, a abordagem em "Bojack Horseman" não deixa de ser muito diferente de outras excelentes séries recentes, como "Fleabag" e "Ted Lasso". Nesses dois casos, começamos assistindo pensando se tratar de dois programas bobinhos, um sobre uma mulher vivendo um dia a dia banal, e quebrando a quarta parede com o espectador direto, e o outro apenas um programinha inocente com temática de futebol. Só que com o passar dos episódios, ambos se mostram muito (mas, muito) mais do que isso. 

Assim como "Bojack Horseman", que parece ser apenas uma animação com gags à lá "Os Simpsons", mas, que mostra ser bem mais do que aparenta. Como o próprio Bojack, diga-se. 




Aqui temos, uma série muito bem construída em uma proposição complicada nos dias atuais: questionar quem somos e o que fazemos da nossa vida e com a vida de terceiros. Olhar para o espelho. Admitirmos que não somos perfeitos. Que o mundo não é perfeito. Pra uma animação com animais falantes, "Bojack Horseman" nos apresenta uma instigante jornada de (re)descoberta, ora divertida, ora bem dolorosa. Mas, sempre humana, demasiadamente humana.  


Nota: 9/10

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