Dica de Documentário

Estamira
2004
Direção: Marcos Prado


A sabedoria é para poucos; muito poucos. Porém, ela cobra seu preço: um preço, muitas vezes, condicionado à falta de adequação social, seja isso através de uma (aparente) insanidade mental ou na recusa em se aceitar um Deus todo-poderoso imposto goela abaixo.

Estamira, vivendo num lixão, e com uma visão toda peculiar da vida, não se sente inserida nesses contextos de normalidade. Ela é sábia, sim, mas precisou conhecer o animal humano para adquirir tal conhecimento. Praticamente, ninguém a entende e ela vive em seu mundo; um mundo onde reina a verdade.



A nada ela se submete, a nada ela se curva. Entre frases desconexas e pontos inquietantes ("Você não vai à escola para aprender; vai para copiar! Copiar as hipocrisias e as mentiras!"), Estamira tem o que podemos chamar de liberdade.

No entanto, sua vida pessoal foi cheia de percalços: o enlouquecimento da mãe, as humilhações do marido, a incompreensão dos filhos, as violências sexuais que sofreu... Tudo converge pra ideias verdadeiramente críticas (principalmente, em relação a Deus), mas sempre acompanhadas de muita dor e sofrimento.


Nesse ponto, inclusive, ocorre uma das maiores divergências na vida de Estamira: o choque de sua visão de Deus com a religião do filho, que acredita que a mãe, simplesmente, está endemoniada. Tal atitude dele só faz piorar o estado dela, visto que ele só aceita vê-la novamente após "Deus a perdoar os seus pecados".

Acabam restando apenas quatro pessoas ao lado dela: suas outras duas filhas (uma, por sinal, que foi viver com uma madrinha, e parece ser a que mais entende Estamira), e dois amigos que trabalham com ela no lixão. Mesmo assim, parece não se apegar a ninguém.


O documentário é extremamente tocante ao mostrar a visão de mundo dela intercalada com as desoladoras imagens que ele vê todos os dias, como pessoas passeando entre o urubus, buscando restos para que possam suprir suas necessidades. É chocante quando o caminhão despeja os dejetos, inúmeros se aglomeram para pegarem o que podem.

A condição humana é muito bem retratada aqui, não como uma mera consequência naturalista, mas como resultado das ações do próprio homem. A escravidão, por exemplo, nada tem de natural, segundo Estamira: "Quando Izabel libertou os negros, não deu emprego a eles. Por isso, precisaram catar restos para sobreviver, e isso é muito triste." 


A busca dela pela verdade esbarra em muitas de nossas convenções sociais: quem é Deus, como somos tratados pela medicina, o sentimento de se importar com a condição miserável do outro, as várias formas de loucura, entre tantos outros interessantíssimos pontos de vista mostrados por ela.

A desolação de um mundo hostil e pueril não impediu que Estamira fosse crítica consigo e com os outros. A válvula de escape que usou (uma aparente deficiência mental) ainda tem um conceito muito limitado por nós, o que, invariavelmente, faz com que pensemos que ela é, pura e simplesmente, louca. Reduzida ao mínimo convívio social possível, ela só consegue enxergar o homem como um animal, mesmo que superior.


Mas, a vida, em si, não é louca? Os outros em volta de Estamira (em especial, o seu filho religioso) seriam mais sãos do que ela? O que eles também fazem de suas vidas? Não seria ele apenas uma pessoa livre, liberta de amarras e preconceitos?

Como documentário, "Estamira" é bem elaborado e chama a atenção pela força interior da protagonista. Como obra de arte limpa e cristalina, expõe  nossa condição, e nos induz a pensarmos como as nossas vidas são levadas, muitas vezes, para algo que está longe de ser a nossa real essência.

Lastimável pensar, porém, que mesmo com tanta sabedoria, isso não impediu que Estamira morresse em 2011, vítima, ao que tudo indica, de negligência médica. Mas, como ela mesmo disse uma vez, “visivelmente, se eu me desencarnar eu tenho a impressão que serei muito feliz."

Uma das mais tocantes e necessárias produções recentes do cinema no Brasil. Sublime e triste.


Nota: 10/10

Comentários