Dica de Filme

A Dança da Realidade
2013
Direção: Alejandro Jodorowsky


O cinema, em si, é simbólico por natureza. Falar de assuntos através de imagens e palavras que, aparentemente, falam de outra coisa sempre foi o mote da sétima arte. Porém, alguns filmes vão além e fazem do simbolismo a sua principal estrutura, seja ela estética ou ideológica.

"A Dança da Realidade", uma das melhores produções dos últimos tempos, vai exatamente por esse caminho e, justamente por isso, transforma-se numa experiência fascinante de se assistir. Com suas sequências, à primeira vista, desconexas, ele consegue uma ótima unidade para falar do valor da liberdade e criticar toda a forma de tirania.



O núcleo familiar do filme é bastante peculiar. Formado por um garoto tímido, com sua mãe que canta em tenor toda vez que fala e com um pai autoritário que é a cópia fiel de Stálin, esse improvável trio vive numa pequena cidade do Chile, sitiada por tropas de um regime ditatorial.

Pelas ruas e bares perambulam toda a sorte de miseráveis, sejam bêbados em busca de diversão, sejam mendigos mutilados por bombas numa guerra da qual nem eles compreendem. Em outro momento, vemos um desfile com bandeiras da suástica nazista, empunhadas por pessoas com máscaras idênticas, inexpressivas; sem identidade, portanto.


Os planos dos revoltosos para assassinarem o ditador do país são propositalmente dantescos. O próprio regime é uma grande piada. Enquanto pessoas doentes nas ruas passam fome, a elite do local se diverte com um concurso de cachorros, por exemplo. Ao mesmo tempo, as autoridades locais recolhem mendigos para serem levados aos lixões da cidade.

Forte, muito forte, mas extremamente poético e ousado. As imagens são provocativas e incômodas, mostrando o quão o ser humano pode ser, em última instância, ridículo. Também há um viés religioso (mais precisamente, espiritual) muito intenso aqui. A crítica, na verdade, recai sobre as religiões, e há um nítido incentivo ao cultivo interior de cada um.


O diretor Alejandro Jodorowsky aparece o tempo todo no filme, sendo uma espécie de consciência do garoto. Estendemos aí que o menino pode muito bem ser o alter-ego do cineasta, e que se ele não viveu, simbolicamente as situações descritas aqui, pelos menos, cremos que a inquietação dele com os males do mundo foi (e é) bastante intensa.

Próximo do final, o dedo é colocado em nossas próprias feridas. A dor é grande, mas, necessária. Por vezes, bancamos um tirano para fugirmos de nós mesmos, de quem, de fato, nós somos. Ao queimar os retratos de Stálin e do ditador chileno Ibanez, finalmente há, para o pai do menino, a libertação, a redenção, o expurgo.


A dança serve tanto para nos esquivarmos da realidade, quanto para irmos em direção a ela e enfrentá-la. Cabe, então, uma escolha. Mesmo que sejam passos difíceis, desajeitados, não importa. Que sejam, ao menos, verdadeiros. Eis aí, talvez, um das a principais simbologias que encontraremos aqui.

Não obstante, o cineasta quer nos dizer mais que isso. Para tal, utiliza uma bela analogia na derradeira sequência do filme: vários personagens são retratados em cartazes pintados de preto e branco, à beira de um cais. Nisso, um garoto, com roupas coloridas, corre no meio deles. O que podemos deduzir? Que nunca deixemos a criança dentro de nós morrer ou se contaminada por um mundo hostil.


Em suma: um cinema delicado, sutil em alguns momentos, desconfortável em outros, minucioso, e, em certos termos, até mesmo complicado (principalmente para um público mais acostumado aos blockbusters hollywoodianos). Porém, a quem se arriscar, terá a oportunidade de ver um filme realmente sublime.

Boa viagem.


Nota: 9/10

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