Dica de Filme

Que Horas Ela Volta?
2015
Direção: Anna Muylaert


De uns tempos pra cá, o cinema brasileiro vem tentando criticar a classe média. O problema é que geralmente essas produções, no alto de suas pretensões, não conseguiram realizar uma avaliação verdadeiramente mordaz ao estilo de vida individualista e mesquinho desse grupo, e, em alguns casos, parecem fazer apologia a ele (vide os sofríveis "O Som ao Redor" e "Casa Grande", por exemplo).

"Que Horas Ela Volta?" quebra esse paradigma. Consegue fazer uma boa análise dessas novas engrenagens sociais do Brasil, mas sem oferecer algo panfletário. A cineasta Anna Muylaert conduz o filme com muita leveza, simplicidade, com um certo minimalismo. E, que bom. Sem soar nem um pouco prepotente, o resultado é a exposição do cotidiano de uma família, com foco em sua empregada doméstica. A mensagem, então, vai sendo passada através dos pequenos acontecimentos.



No início, vemos Val (a empregada) cuidando do filho da patroa, Fabinho, ainda criança. Enquanto ele brinca na piscina, ela liga para procurar saber da filha, que ficou morando em Recife. Na cena seguinte, anos depois, ela já é "praticamente da família". E, esse praticamente é literal, pois, mesmo participando de alguns momentos importantes desse convívio familiar, tudo é muito bem delimitado, e Val sabe muito bem o seu "lugar" na casa.

Todos são muitos simpáticos com ela, mas muitos de suas coisas não são bem-vindas no estilo de vida deles. O tratamento dispensado à empregada “quase da família” ainda reproduz a casa grande e a senzala, porém com bons modos, numa aparente educação. Isso é bem mostrado quando Val dá de presente à patroa um conjunto de xícaras, e esta se recusa a usá-las numa festa, preferindo produtos caros e importados.



A situação começa a mudar quando a filha de Val, Jéssica, chega para ficar com ela em São Paulo, enquanto estuda para uma prova no vestibular. De cara, ela já percebe as condições de vida e trabalho de sua mãe. Desde o quarto minúsculo que terão que dividir até a resolução velada de que empregados não podem jamais comer na mesma mesa dos patrões. E claro, vai mostrar que não aceita sob nenhuma hipótese ser “pior” do que ninguém, mesmo sendo tratada como a "filha da empregada".

Com muita sutileza, o filme vai tecendo suas críticas. Quando, por exemplo, Jéssica ao conversar com os patrões de sua mãe, diz que quer fazer Arquitetura por motivos sociais, a patroa de sua mãe faz cara de nojo, e desabafa: "Esse país está mudando!" É o espanto de um grupo assustado com a possibilidade de perder seus privilégios, ante o direito dos outros.  Expondo assim, com "pequenas-grandes" cenas, percebemos que o longa não quer dar um passo maior que as pernas.



O filme é recheado de sequências que são ótimas críticas. No entanto, sem serem expositivas demais, passam o recado com bastante naturalidade. Cabe ao espectador identificar cada uma dessas "alfinetadas", e daí será fácil traçar um paralelo com o Brasil atual. Nesse sentido, Anna Muylaert, responsável também pelo roteiro, não quis "reinventar a roda". Fez o caminho mais honesto e bem-intencionado possível, e até o mais difícil, já que a cobrança dos filmes que se propõem críticos é que tenham muita “intelectualidade”.

As atuações são ótimas, mas, o destaque vai mesmo para Regina Casé. Ela faz de Val uma personagem singela, cativante, mas, por incrível que pareça, sem tanta afetação. Vale ressaltar também a presença de Lourenço Mutarelli, que faz o patriarca da casa, e que possui papel-chave na trama. Mutarelli, inclusive, a exemplo de "O Cheiro do Ralo", mostra bastante carisma e competência como ator.


Reclamações? Praticamente nenhuma. Antenado com o seu tempo, a produção passa sua crítica de forma delicada e minuciosa. "Que Horas Ela Volta?", antes de ser, quem sabe, estudado futuramente nas escolas e universidades, quer ser compreendido, quer dialogar nossa atual situação social, nossos preconceitos, nossas exclusões, nossos egoísmos. E, isso tudo, sem querer ser "cult".


NOTA: 8,5/10

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