Dica de Filme

A Mosca
1986
Direção: David Cronenberg


Cronenberg sempre gostou de falar de monstros, de "deformidades". Mas, não de uma maneira tradicional. O monstro, para ele, sempre foi uma metáfora da vida moderna, seja pela destruição das relações afetivas, seja pelo excesso de tecnologia que nos tira a humanidade. Nesse aspecto, "A Mosca", refilmagem de um clássico cult da década de 50, engloba muito bem esses dois mundos. De quebra, mostra-se como um dos mais coesos trabalhos do diretor, conseguindo construir uma alegoria social pertinente, que dialoga com os dias atuais sem nenhum problema.

Aqui, não é, necessariamente, a máquina o grande mal, mas, a ganância, a soberba e a vaidade. Tudo devidamente punido posteriormente da pior forma possível. Não que haja alguma forma de moralismo tacanho no sub-texto de "A Mosca", mas, é bem notória a sua crítica social, fazendo dele mais um drama do que um terror propriamente dito. Cabe ao personagem principal, o cientista Seth Brundle, encarnar os aspectos mais negativos das pessoas, mesmo que ele não seja, propriamente, alguém de caráter duvidoso, e sim, alguém que pagará um alto preço pela arrogância.




Nesse sentido, a sequência inicial, com Seth se apresentando num evento científico é emblemática. Ele se mostra bastante orgulhoso com os seus experimentos, mas, também demonstra pouco tato para lidar com a vida social. Apenas uma pessoa acaba se mostrando interessada em sua pessoa: a jornalista Verônica Quaife, que além de acompanhá-lo até a sua residência, também concorda em presenciar um de seus experimentos, envolvendo uma espécie de máquina de teletransporte. De início, tudo é fascinante, porém, problemas começam a surgir quando Verônica decide querer expôr as descobertas de Seth, ao mesmo tempo que ele tenta aperfeiçoar sua invenção, depois que um de seus experimentos, envolvendo um babuíno, sai terrivelmente do controle.

O bom do filme, é que a história, mesmo pertencendo a uma produção curta (pouco mais de uma hora e meia de duração), ele deixa espaço para os acontecimentos serem plenamente desenvolvidos. Seth e Verônica, por exemplo, vão construindo uma relação de afeto aos poucos, mesmo que, no fundo, há interesses a mais de ambas as partes. Até o mote principal da produção, no qual um dos experimentos afeta Seth de maneira cada vez mais escabrosa, não é simplesmente "jogado" na tela. A gradativa "transformação" do cientista tem tempo certo pra ocorrer, com o roteiro (sabiamente) preferindo apostar nas mudanças de comportamento dele, e nas reações cada vez mais desesperadas de Verônica.




Importante notar que o filme gira, basicamente, em torno de três personagens (o já citado casal principal e Stahis Borans, que trabalha como editor de um jornal, ao lado de Verônica, e que já se relacionou no passado com ela). E, todos são muito bem desenvolvidos na trama. Seth é um misto de ingenuidade e prepotência, com seus demônio internos sendo revelados à medida que sua metamorfose vai ficando mais evidente. Verônica é tão ambiciosa quanto o cientista, mas, mostra-se relutante em ajudá-lo a situação piora. Ao passo que Stathis, além de ainda nutrir um certo apego pela companheira de profissão, não vê Seth com bons olhos. 

A produção, em si, é taxada de terror, mas, ela só assume mesmo essas características nos seus minutos finais. Antes disso, o que assistimos é um drama um tanto pesado de alguém que, mesmo não compreendendo as transformações pelas quais passa, e sente medo por isso, ainda assim, mostra-se fascinado por estar fazendo, ele mesmo, parte de uma experiência que pode revolucionar o mundo. Em paralelo, sua humanidade vai, aos poucos, desaparecendo, dando lugar a instintos dos mais primitivos. Num diálogo bastante simbólico entre um Seth já bastante deformado e Verônica, ele revela a ela que os insetos não têm política, e que ele gostaria se ser o primeiro inseto político do mundo, que tivesse sentimentos humanos.




O elenco todo está muito bem em seus respectivos papéis, com destaque para Jeff Goldbrum, que mesmo sobre quilos e quilos de maquiagem, consegue passar a sensação de humanidade de um ser, ao nossos olhos, nojento e asqueroso. E, claro, o grande maestro aqui, Cronenberg, faz mais um belo trabalho. Mesmo com um material, à primeira vista, simples, e que poderia resvalar num mero terror sanguinolento e repulsivo, o diretor orquestra muito bem a narrativa, e extrai as críticas necessárias presentes nas entrelinhas do enredo, com alusões a obras, como "A Metamorfose" e "O Médico e o Monstro". Obviamente, para os fãs mais hardcore do cineasta, temos também ótimo efeitos visuais, orgânicos na medida certa, e que até hoje, envelheceram pouco.

Um excelente exemplo de remake bem melhor do que o original, "A Mosca", mesmo que recebe o estigma de ser um filme de horror, vai muito além disso, mostrando que tínhamos um tempo em que esse tipo de produção não feria a inteligência do espectador. Com mensagens contundentes, esta é uma das melhores produções de Cronenberg, que, bem ao seu estilo, é curta, seca e que termina no momento certo. No final, vemos que os verdadeiros monstros não são, necessariamente, aqueles que têm a aparência mais assustadora, podendo uma criatura das mais asquerosas residirem em qualquer ser humano dito "normal".
                                 
NOTA: 9/10


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