Dica de Filme

O Pescador de Ilusões
1991
Direção: Terry Gilliam


A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA VIDA, POR TERRY GILLIAM

No cinema, um tema pode ser abordado de diversas maneiras, e, muitas vezes, é isso o que delimita se um filme será bom ou não. Isso vai depender muito de seu realizador (ou realizadores). Por exemplo: histórias de superação depois de um trama, de uma tragédia, temos aos montes por aí, e estão tanto em produções de terror, quanto no gênero gospel (só pra se ter uma ideia). Portanto, para se diferenciar num enredo desse tipo é preciso que o filme seja, digamos, no mínimo, peculiar; tão peculiar quanto o seu autor. E, nesse aspecto, o cineasta Terry Gilliam cai como uma luva para realizar essa tarefa. Mais excêntrico do que Tim Burton e Wes Anderson juntos, o ex-Monty Python sempre teve uma filmografia diferenciada, e "O Pescador de Ilusões" é, sem dúvida, uma de suas melhores realizações.




Tudo funciona perfeitamente bem na história, e, em grande parte, graças ao seu rol de personagens fascinantes, totalmente fora da curva dos clichês do gênero. Temos, pra início de conversa, um ex-astro de rádio, Jack Lucas, que, como pessoa, é um cara odioso. No começo, vemos o quanto ele é insuportável, apresentando um programa de "conselhos", que, na realidade, não passa de um pretexto para ele tripudiar em cima dos problemas dos outros. O deboche faz parte de sua vida, tanto profissional, quanto pessoal. Uma tragédia, porém, acaba com a sua carreira de locutor, fazendo com que ele virasse um bêbado e depressivo (mas, não menos insuportável do que era antes). Mas, então, ele conhece Parry, um mendigo um tanto perturbado, mas, com uma filosofia de vida bem interessante, A partir daí, a vida do arrogante ex-locutor começa a mudar. 

Mas, vejam bem: a VIDA de Jack começa a mudar, e não ELE propriamente dito. E, isso é um dos grandes trunfos da trama: não se render a clichês baratos, com soluções fáceis. Seria muito simples Jack passar a ser uma pessoa mais afável após conhecer Parry, passando a entender melhor o sentido da existência humana, e tudo o mais. Porém, apesar do remorso que sente pelas coisas que fez, ele não muda tanto assim, apesar de ir moderando suas atitudes as poucos. Ainda assim, continua sendo arrogante e egoísta em muitos pontos. Em relação ao personagem de Parry, este é outro que merece ser um pouco mais explicado. A princípio, ele parece ser só mais um mendigo, cuja fantasia extrapolou a realidade, fazendo ele ter alucinações horríveis. No entanto, com o passar do tempo, vamos entendendo que a relação dele com Jack é bem mais profunda do que aparenta. Nesse aspecto, o enredo vai bem no ponto da mensagem que o filme quer passar: a de que as nossas atitudes influenciam a vida dos outros, para o bem e, principalmente, para o mal.




E, essa foi uma aposta arriscada do roteiro, pois, facilmente, a história poderia cair no pieguismo ou no mau gosto, repleto de lições de moral capengas. Mas, lembremos que quem estava no comando aqui foi Terry Gilliam, e sua direção é um dos principais fatores que determinam a imensa qualidade do filme. Com uma câmera ágil, dinâmica, que raramente está estática ou num nível "normal" de enquadramento, conseguimos ter uma imersão na história muito singular, como se estivéssemos não só ao lado dos personagens, como também sentindo o que eles sentem, quase sabendo o que eles pensam. Somos envolvidos, freneticamente, em cada situação: da angústia de Jack ao transtorno de Parry. E, tudo é intensificado pelo imenso simbolismo de algumas cenas, como quando Parry vê um estranho cavaleiro coberto de fogo toda vez que se sente feliz ou perto de uma importante realização pessoal. 

Interessante notar também que alguns diálogos, mesmo que pareçam banais num primeiro instante, acabam passando, indiretamente, algum propósito, como quando Jack se arrisca numa "missão" para ajudar Parry, e diz: "Raramente, as pessoas olham pra cima". Tudo bem que essa fala se encaixa perfeitamente na situação em que ele se encontra naquele momento, mas, ela também pode ter diversos significados, principalmente, pelo tom metafórico que impera em boa parte do filme. Por sinal, é através da metáfora, que Gilliam nos brinda com uma belíssima sequência, na qual Parry, ao ver uma mulher por quem está apaixonada, enxerga uma multidão de transeuntes dançando ao som de uma falsa, e quando a sua amada vai embora, os "dançarinos" voltam a andar normalmente, levando suas vidas normais e cotidianas de sempre. Tão cotidianas que, num determinado instante, um dos personagens, também mendigo como Parry, diz a Jack: "Esse pessoal nos dá uns trocados só para não ter que nos ver".





Engana-se, porém, quem pensa que o filme se resume apenas a Jack e Parry, pois, as figuras femininas que estão do lado deles também são tão fascinantes quanto. A começar por Anne, namorada de Jack, que se mostra um tanto fútil e fora de tempo no início da história, mas, que vai se mostrando uma mulher bem forte, principalmente, quando tem que amenizar as coisas para o seu companheiro em seus acessos de depressão. Já, Lydia, o amor platônico de Parry, apresenta-se como uma garota desajeitada e um tanto ingênua no começo, mas, assim como Anne, no decorrer da história, ela vai ganhando força, e vemos que ela apenas quer ser feliz com alguém, não mais que isso, mostrando, assim, ser uma pessoa muito solitária. São personagens maravilhosas, e que, diga-se de passagem, quebram algumas convenções do gênero, o que é sempre bem-vindo.

O filme, tecnicamente falando, é muito bem cuidado, do jogo de câmeras, à fotografia, passando por alguns sutis efeitos visuais. Como diretor, Gilliam mostra estar bastante à vontade com o material, criando uma narrativa tão sem atropelos, que as mais de duas horas da produção, praticamente, não são sentidas. Agora, claro, muito da qualidade do longa se deve também aos seus atores, em especial, Jeff Bridges e Robin Williams. O primeiro faz um personagem que, mesmo antipático na maior parte do tempo, vislumbramos muita humanidade nele, e, com todos os seus defeitos, no final, torcemos por ele. Já, Williams faz o que sabia fazer de melhor: transborda carisma em sua atuação, fazendo desta um de seus melhores trabalhos.

Por fim, "O Pescador de Ilusões" ganha muitos méritos por ser um filme que (apenas) aparenta ser mais um desses dramas de auto-ajuda, mas, que, dada a excentricidade de seu realizador, vai além no sentido de questionar a vida e os seus problemas do dia a dia. E, nada soa forçado, é bom dizer. Quando parece que a história vai cair na armadilha do piegas, Gilliam corta a cena, expõe outra completamente diferente em termos de sentido lógico, mas, que, estranhamente, completa a anterior. Com isso, temos um drama dentro de uma comédia, que está dentro de uma fantasia, e que é tudo isso junto. Ou, não. Afinal, a vida não é essa linearidade que dizem, ao contrário: ela quase sempre segue um rumo totalmente inusitado. Talvez, a única certeza seja mesmo o ponto central que filme passa tão bem, que é o fato de que as nossas atitudes sempre vão influenciar na vida de outras pessoas. Se isso é bom ou ruim, vai depender das nossas escolhas, que podem ser simples. Tão simples quando ficarmos sem roupa no meio do Central Park, olhando as nuvens... 


NOTA: 9/10


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