Opinião

Que Mundo é Este onde os Verdadeiros Artistas Partem por Causa da nossa Falta de Humanidade?
Por Erick Silva


Arte é escapismo. Sempre foi. Nunca deixou de ser. Mas, também é uma forma de expurgo do próprio artista. Alguns, colocam futilidades para fora. Outros, inquietações, sofrimentos, angústias. Aos primeiros, geralmente, o sucesso é passageiro, transitório, mesmo que os holofotes sejam grandes na indústria de entretenimento. Já, para os segundos, sobra a perenidade de suas obras, ao mesmo tempo que alguns pagam com a vida devido às suas angústias. O verdadeiro artista se incomoda com a realidade. Isso é fato. Mas, o que fazer? Tratar a depressão desse artista? Taxá-lo de louco, de anormal? Ou, seria melhor tentar melhorar o mundo à nossa volta? Tentarmos sermos seres humanos melhores? 


Em momentos assim, com o falecimento de artista do naipe de Chris Cornell, muitos repetem os velhos jargões de sempre: "Quem se mata não tem Deus no coração", "Só podia ser roqueiro, mesmo, para estar metido nas drogas", e por aí vai. O grande "erro" de Cornell para quem ainda insiste nesses jargões foi ele ter se incomodado "além do permitido", e ter transparecido isso na sua arte. É bom lembrar que ele foi um dos vocalistas mais intensos e mais passionais do grunge, movimento musical que tirou o rock da letargia nos anos 90. Assim como o seu colega de longa data Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam, Cornell "sentiu demais" o mundo ao seu redor. Só que Vedder soube equilibrar suas inquietações. Cornell, não. E, não deve ser julgado "culpado" por isso. 

Não quero dizer que o suicídio (provável causa de sua morte) seja uma saída para os nossos demônios internos. Porém, chamo a atenção de quem tece comentários simplórios quando esse tipo de assunto é abordado. Ao invés de entendermos uma pessoa nessas condições, facilmente julgamos ela disso ou daquilo, como é típico da nossa mediocridade reinante. Mas, que tal olharmos as próprias letras de Cornell antes de condená-lo por algo que não é (e, nem nunca foi) crime? Peguemos, por exemplo, um trecho da letra de "Black Hole Sun": "Times are gone for honest men / And sometimes far too long for snakes" ("Os tempos se foram para homens honestos / Mas parecem nunca passar para as cobras"). Com esse tipo de consciência, ninguém consegue viver em "paz". Ninguém.


Outra letra reveladora é a de "Outshined": "I got up feeling so down / I got off being sold out / I've kept the movie rolling / But the story's getting old now" ("Eu acordei me sentindo tão triste / Eu escapei de ser vendido / Eu tenho deixado o filme rodar / Mas a história está envelhecendo agora"). Não há como negar a poética melancólica que Cornell imprimia em sua música. Ele até tentou algo mais palatável no Audioslave, banda-projeto com os integrantes do Rage Against the Machine. Mas, de cara, a primeira música do primeiro disco do grupo, "Cochise", já preconizava: "I've been watching / While you've been coughing/ I've been drinking life / While you've been nauseous / And so I drink to health / While you kill yourself / And I've got just one thing / That i can offer / Go on and save yourself / And take it out on me" ("Eu estava assistindo / Enquanto você tossia / Eu tenho "bebendo" a vida / Enquanto você tem náuseas / E então eu brindo à saúde / Enquanto você se mata / E eu tenho apenas uma coisa / Que eu possa oferecer / Vá e salve-se! / E desconte tudo em mim").

Triste, é verdade. Mas, autêntico, verdadeiro, único.

Porém, ainda haverá aqueles que julguem Cornell como um louco, como apenas mais uma pessoa "perturbada", que se deixou consumir por sua própria arte. Só que uma pessoa assim pode ser muito mais do que essa definição absurdamente preconceituosa. Cornell está no mesmo patamar de outros como Kurt Cobain, Amy Winehouse e Elliot Smith: aqueles cujas dores transpassaram de tal forma a sua arte que os afetaram para sempre. E, não se tratam de pessoas loucas, e sim, de pessoas dolorosamente conscientes. E, isso jamais pode ser considerado um erro, uma falha. "Sentir" o mundo dessa maneira é muito triste. É você entender como as coisas estão, e podem continuar estando por um longo tempo. É você, muitas vezes, entender a sua pequenez, a sua insignificância diante de um mundo amplo, com pessoas possuindo as mais diversas dores. Repito: é triste, mas, pessoas assim atingem um grau de humanidade que poucos têm coragem de atingir.


Chris Cornell e tantos outros  se vão de forma tão trágica justamente porque nós nos recusamos a entender o "outro". Cada vez mais fechados em nosso mundos, vamos abdicando de uma verdadeira humanidade, para nos tornarmos egoístas, arrogantes, prepotentes. E, Cornell entendia isso, como tantos outros artistas maravilhosos que passaram por aqui também entendiam, e deixaram uma marca inconfundível. Por isso, vou tentar terminar esse texto com uma certa esperança; a esperança de que possamos tanto continuar tendo artistas e pessoas geniais como Chris Cornell entre nós, como também que possamos ser seres humanos melhores com os outros.

Afinal:

"The original fire has died and gone
But the riot inside moves on
With a pen in one hand
Taking a stand, drugged on kerosene
84 And 5 would find us something to believe"
("O fogo original que tinha morreu e se foi
Mas por dentro move a desordem
Com uma caneta numa mão
Nos levando e queimando em querosene
Indo em direção ao fogo encontraríamos algo em que acreditar").


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