Dica de filme ("infiltrado na klan")


Dica de Filme

Infiltrado na Klan 
2018
Direção: Spike Lee


Spike Lee num discurso mais poderoso do que nunca

Falar em cinema "panfletário" causa ojeriza em alguns cinéfilos. Em parte, faz sentido. Muitos filmes que tentam "passar uma mensagem" são, de fato, forçados, mas, muitos outros conseguem passar o que querem de maneira mais natural, mais orgânica do que o normal. É aí que entra o trabalha do ótimo cineasta Spike Lee, que faz da sua arte um grande panfleto político e social, sem pudor algum, e, na maioria das vezes, acerta no alvo. 

Chegamos, então, na sua mais recente empreitada, Infiltrado na Klan, que conta a história verídica de Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, que, em 1978, conseguiu entrar na temida Ku Klux Klan. 




Primeiramente, vamos às falhas. Sim, aqui temos um típico filme "cool" até o osso, com uma mensagem fortíssima em todas as suas camadas, mas, que tem momentos nos quais se perde um pouco, e isso é culpa do roteiro inconstante escrito pelo próprio Lee. 

Indo direto ao ponto: não são raros os momentos em que a narrativa avança granças a algumas atitudes bastante tolas dos protagonistas, em especial, do próprio Stallworth, que, ao ligar para um dos chefes locais da Klan, chega ao cúmulo de dar o seu nome real ao invés de um fictício (e, isso só pra citar um dos casos). 

Tais artifícios realmente enfraquecem a trama, e, às vezes, impedem que tenhamos mais carisma pelo protagonista, o que acaba sendo uma pena, pois, de fato, acabamos vislumbrando aqui uma boa "jornada do herói", com Stallworth, gradativamente, amadurecendo a sua forma de ver o racismo e como as autoridades lidam com isso.

No entanto, mesmo com essa falha substancial do roteiro, este ainda consegue ser bem estruturado quanto a outros elementos, como, por exemplo, a dualidade que passa a perseguir Stallworth, sendo um policial infiltrado numa organização racista, e ainda tendo que lidar com o fato de estar infiltrado numa congregação de ativista anti-racismo, onde, entre as palavras de ordem, está o completo repúdio às forças policiais. 

Inclusive, são nessas reuniões que Stallworth conhece Patrice, personagem fundamental para o amadurecimento do protagonista ao longo de sua jornada. Os momentos do filme onde ela aparece são bem impactantes, e mesmo que o discurso da personagem pareça extremista, ele se mostra bastante coerente, principalmente, devido ao que ela e outros amigos passaram nas mãos de policiais.




De maneira bem contundente, o roteiro também usa de muita metalinguagem para passar o que quer. Vemos desde a menção inicial a ...E O Vento Levou, passando pelo hediondo efeito causado pelo filme O Nascimento de uma Nação, e chegando até os dias atuais, mais precisamente, no governo Trump, onde a Klu Klux Klan voltou a dar novamente as caras com bastante força. Uma mescla de ficção e realidade que só reforça o quão dantesco é o dito "mundo real". 

Por isso, não é de se admirar que muitos dos membros da Klan, na parte fictícia do filme, comportem-se mais como desequilibrados mentais, com atitudes e falas bem infantis (inclusive, qualquer semelhança com alguns eleitores de um certo político brasileiro atual, é mera coincidência). Se em algum momento, você se sentir constrangido vendo alguns desses personagens, não se preocupe (foi justamente essa a intenção).

Paralelo à toda a importância que o filme gera em tempos como o que estamos vivendo, temos um Spike Lee em plena forma como diretor, ágil nos manejos de cena, certeiro na condução dos atores (todos ótimos) e muito eficaz na dramatização de seus denúncias, conseguindo mentar um tom coerente o tempo todo, nas mais de duas horas de sue filme. 

Certamente, dois dos melhores momentos são o discurso feroz do ativista Kwame Ture (primeiro contato de Stallworth com uma militância ferrenha, o que faz com que ele já comece a refletir mais a sua condição), e na sequência do atentando, em cenas bastante tensas e que mostram um baita domínio cênico Lee na condução delas. Nesse meio tempo, a trilha sonora, totalmente black e setentista, completa o clima  da produção, que ainda faz menções a filmes com protagonistas negros importantes para a época, como Shaft, por exemplo.




Infiltrado na Klan não é uma produção perfeita, pois poderia ter trabalhado melhor certas atitudes dos protagonistas, gerando alguns furos aqui e acolá, mas também é inegável que se trata de um filme feito com a garra e a revolta suficientes de um diretor que sabe muito bem do que está falando, e que, portanto, não pode se chamado de oportunista ou qualquer coisa do tipo. 

Na realidade, este seu novo trabalho também transcende a questão panfletária, pois, a discussão que ele propõe não se encerra com Stallworth e Patrice de armas na mão, prontos para se defenderem da Klu Klux Klan. 

Não. 

Mostra, acima de tudo, que a história se repete, principalmente para aqueles que precisam ficar em eterna vigilância, seja contra um estado que usa da truculência policial e têm políticos que pregam discurso de ódio, seja contra muitos membros da sociedade civil, que ainda estão impregnados de doenças como o racismo, o machismo, a homofobia, etc.

Um filme que poderia ter sido feito há 40, 30 ou 20 anos atrás, mas que precisaria ter sido feito mesmo em pleno ano de 2018.


NOTA: 8/10



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